São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
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A família como instituição econômica - 1

EDUARDO GIANNETTI

Para quem busca o conhecimento, surpresas são achados valiosos. A descoberta de um fato surpreendente leva à procura de novos fatos e suscita a formulação de hipóteses e teorias que possam elucidá-lo. A mente científica trabalha com um radar ligado ao anômalo e ao inesperado. A surpresa é o estopim da pesquisa –uma janela entreaberta para o desconhecido. Diante dela, o pensamento amanhece e desperta do sono dogmático.
Para os estudiosos do desenvolvimento e do capital humano, os últimos anos têm sido repletos de surpresas. Uma descoberta inusitada veio com o resultado de testes feitos pelo Banco Mundial para avaliar o desempenho escolar de crianças de diferentes países.
Os alunos sul-coreanos, quem diria, tiraram o primeiro lugar em matemática, deixando para trás seus colegas da mesma idade nos países desenvolvidos. Inúmeras desvantagens –turmas maiores, escolas pior equipadas, professores menos credenciados e renda ``per capita" bem mais baixa– não impediram que a Coréia do Sul desse um baile educacional.
Outra surpresa vem da Califórnia. Embora representem só 9,5% da população daquele Estado, os descendentes de asiáticos ocupam 36% da vagas na Universidade da Califórnia, superando até mesmo a proporção de jovens da maioria branca. Os de origem latina –que somam 26% da população do Estado– preenchem apenas 13% das vagas na mesma universidade. A diferença reflete o desempenho na ``high school". Asiáticos e latinos, vale lembrar, chegaram igualmente pobres à Califórnia.
Fatos como esses dão o que pensar. O capital humano é a essência do desenvolvimento. Nenhuma população carente de capital humano consegue escapar de uma condição econômica precária. Mas a condição econômica, apesar de relevante, não determina sozinha o desempenho escolar e a formação de capital humano. Países como a Coréia do Sul partiram de trás, mas estão rapidamente alcançando a ponta. Foi o que fizeram Japão e Alemanha no pós-guerra.
O mesmo vale para grupos sociais como os descendentes de asiáticos na Califórnia. Ao conquistarem acesso às melhores universidades, eles estão fazendo um investimento no seu próprio futuro. O esforço, é verdade, está custando boa dose de abnegação no presente, inclusive em termos de prazeres mundanos e ``joie de vivre" sacrificados no altar da dedicação ao estudo. Mas o retorno desse investimento certamente trará a esse grupo uma sensível melhora na sua condição econômica daqui para frente.
Estimativas feitas por Gary Becker, um dos pais da teoria moderna do capital humano, sugerem que houve um aumento expressivo do retorno dos investimentos em educação na última década. É isso aliás que explica, pelo menos em parte, o crescimento da desigualdade na distribuição de renda nos países desenvolvidos.
O custo total de um curso superior nos EUA –incluindo aí a renda não auferida pelo aluno durante os quatro anos de graduação– fica na faixa dos US$ 35 mil a US$ 60 mil por estudante. Contudo, 11 anos depois da formatura, aqueles que fizeram faculdade têm uma renda 60% maior, em média, do que a dos que pararam os estudos no 2º grau.
Ao longo da vida, quem tem curso superior completo termina acumulando uma renda bruta de US$ 600 mil maior, em média, do que a auferida pelos não-graduados. Não é preciso ser profeta para prever que o fosso econômico entre asiáticos e latinos –algo que não existia nas primeiras gerações de imigrantes– vai crescer muito na Califórnia nos próximos anos.
Diante de fatos como esses, a grande questão é saber o que determina a variabilidade do esforço e do empenho dedicados à formação de capital humano? Se a condição econômica não condena –e os exemplos acima sugerem isso–, então o que salva? Como explicar a notável capacidade de países e grupos sociais que, apesar de todas as adversidades, conseguem de algum modo encontrar forças para fazer o sacrifício e dar a volta por cima?
A primeira tentação é responder invocando a ``cultura". A ``cultura" asiática, por exemplo, e certos traços do confucionismo em particular, estariam por trás do comportamento diferenciado que os faz atribuir um valor maior à educação e, em função disso, investir proporcionalmente mais recursos que outros povos em capital humano.
Penso, no entanto, que é preciso um certo cuidado com as respostas desse tipo. Que a ``cultura" de alguma forma conta, poucos discordariam. Mas isso não nos leva muito longe. Afinal, o que não explica a ``cultura"? O próprio termo é vago o suficiente para nos dar aquela sensação gratificante de que muita coisa foi explicada quando, na verdade, sequer tocamos na elucidação do problema. A embriaguês de conhecimento produzida por conceitos vagos e todo-poderosos como ``cultura" deve ser evitada.
Para fugir da pseudo-explicação, é preciso ser mais específico na identificação das variáveis e mecanismos que permitem analisar o fenômeno. Nada explica tudo. A sedução exercida por certas palavras tem causado enormes danos à busca do conhecimento. ``A filosofia", alerta Wittgenstein, ``é uma batalha contra o enfeitiçamento da nossa inteligência pela linguagem".
Uma abordagem mais frutífera do problema é a que examina em detalhe o papel exercido por uma instituição até aqui pouco estudada pela teoria econômica –a família. Diante de fatos como a competência da matemática das crianças sul-coreanas e o extraordinário desempenho escolar dos filhos de asiáticos na Califórnia, a hipótese básica que vem se fortalecendo entre os pesquisadores é a de que nada substitui a família.
A idéia, é claro, não é nova. A centralidade da estrutura familiar no processo formativo e educacional é um tema recorrente nas reflexões de Marshall sobre o capital humano. O economista britânico Kenneth Boulding, nos anos 70, também chegou a uma conclusão parecida: ``Não há instituição mais importante do que a família, já que o caráter da sociedade é determinado mais pelo caráter de suas famílias do que por qualquer outra coisa; a família, na verdade, é a única instituição que produz gente".
A grande novidade é que agora, pela primeira vez, estão surgindo evidências empíricas que permitem arriscar conclusões mais firmes acerca do impacto de diferentes tipos de estrutura e arranjo familiar sobre o desempenho escolar de seus membros mais jovens. Os dados são até certo ponto surpreendentes e estão levando a uma reavalização do papel da família como instituição econômica.
A segunda parte deste artigo será publicada no próximo domingo.

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