São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
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Firmar de vez a democracia

ANTONIO KANDIR

Mais ou menos cinco milhões. Esse foi o número de votos obtidos por Enéas Carneiro nas eleições presidenciais. Votação assim expressiva de um candidato de inclinação tão autoritária não deve entrar na conta do folclore político do país. É um sinal de alerta, cartão amarelo às nossas instituições.
Fosse um sinal isolado..., mas não é. Iguais são os votos dados ao general Newton Cruz, que no Rio de Janeiro chegaram a 20% do total. O general não é o exemplo do democrata. O que dizer, ainda, da imensa massa de votos brancos e nulos para o Congresso e mesmo para alguns governos estaduais?
Seria apressado e errôneo afirmar que são votos de quem rejeita a democracia. Há várias pesquisas que mostram não ser esse o caso. Mas é inegável que são votos de repúdio à política e aos políticos atuais, portanto passíveis de adesão a forças autoritárias no futuro, se as instituições democráticas não se firmarem em definitivo.
Faço esse comentário não com pessimismo. As eleições representaram importante passo na consolidação da democracia. Não só pela vitória de um presidente da envergadura política e intelectual de FHC, como pelo processo em si, bastando lembrar a civilidade que marcou o embate entre os presidenciáveis e a lisura do pleito.
Faço o comentário para que se meça o peso da responsabilidade que temos pela frente. A tarefa toca a todas as forças democráticas do país. Toca às lideranças de fato empenhadas em mudar a prática política tradicional e o trato predatório da coisa pública, condição indispensável para cortar pela raiz a possibilidade de uma eventual recaída autoritária.
Essas mudanças são importantes para restabelecer não apenas a ``moralidade". Não basta honestidade para que se restitua credibilidade às instituições. É preciso lastro político e material.
Político, na medida que depende de mecanismos e práticas que obriguem o homem público a prestar contas de seus atos. Material, na medida que depende de resultados no que respeita à oferta de bens e serviços à população.
Ambas as dimensões estão ligadas, pois a obrigação de prestar contas induz à eficiência e coíbe a malversação, o que se reflete na qualidade e quantidade de bens e serviços ofertados. Para lembrar frase repetida por Mário Covas, retrucando a máxima atribuída a Adhemar de Barros: ``quem não rouba faz mais e melhor".
Os votos dados a Enéas e Newton Cruz, os votos nulos e brancos resultam da deterioração progressiva das instituições públicas, corroídas por uma crise financeira e gerencial cuja causa primeira está no comportamento predatório de grupos organizados e com acesso aos centros de decisão do Estado.
Estamos assim diante da imensa tarefa de reorganizar financeira e operacionalmente o Estado, para restituir-lhe credibilidade e eficiência. A tarefa comporta várias iniciativas, mas no fundamental trata-se de estabelecer o primado do público sobre o particular no trato das questões de governo.
No Brasil, isso significa promover uma revolução democrática, cujos frutos concretos os cidadãos não tardarão a perceber.
O presidente Itamar Franco deu passos firmes e decididos nessa direção. Vamos prosseguir nessa rota com energia redobrada, para evitar surpresas desagradáveis em alguma curva da história.

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