São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
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A utopia da biblioteca universal

VALÉRIA LAMEGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Roger Chartier instaura, em "A Ordem dos Livros", o debate sobre a autonomia do leitor, a sobrevivência do autor e o futuro do livro em um mundo em que o texto eletrônico já faz parte do cotidiano das grandes bibliotecas.
Numa defesa apaixonada do livro-objeto, Chartier nos lembra que o sonho da biblioteca de "todos os livros" fundamentou as grandes coleções do século 18.
Ao lado das enciclopédias, dos dicionários e dos catálogos, essa bibliotecas "sem muros" envolveram livreiros-editores de toda Europa na impossível missão de reunir a totalidade dos textos, de autores vivos e mortos, numa mesma coleção.
Esta empreitada constituiu não só uma grande iniciativa empresarial, como é a partir dela que a figura soberana do autor ganha relevo. Ao contar a vida dos autores em pequenas biografias, tais publicações os "instituíram como referência fundamental da escrita".
Mais do que um excelente diálogo entre as categorias de leitor, autor, texto e livro, "A Ordem dos Livros" se apresenta como um roteiro metodológico, cuja origem básica se encontra em "A História Cultural: Entre Práticas e Representações", coletênea de artigos de Chartier lançada no Brasil em 1988.
Aqui, como em "A História Cultural", o historiador afirma que "todo texto é um produto de uma leitura, uma construção do seu leitor", mas "este leitor não toma nem o lugar do autor, nem um lugar de autor", pois cabe ao leitor uma segunda invenção.
Apesar de ser um pesquisador voltado fundamentalmente para a constituição de uma história da leitura, neste livro ele enfatiza o processo pelo qual se deu a construção do autor. A diferença entre "A Ordem do Livros" e "A História Cultural", além dos onze anos que os separam, está justamente no fato de Chartier, neste, revalorizar a importância do autor para o estudo do livro.
Crítico em relação ao "new criticism" e ao "analytical bibliography", mais afinado com a sociologia da produção cultural de Pierre Bourdieu e com a estética da recepção, ele observa que "apesar das diferenças, todas essas abordagens têm como ponto comum rearticular o texto ao seu autor e a obra às vontades ou às posições do produtor".
Nesta passagem, Chartier se remete à figura do autor que "ao mesmo tempo é dependente e reprimido".
Dependente do editor e do leitor, ambos agentes transformadores de sua obra. Reprimido por ter que se submeter "às determinações do espaço social", hoje cada vez mais dividido.
O autor, na história cultural proposta em "A Ordem dos Livros", é a peça de articulação dos debates sobre a produção de textos, suas formas e seus leitores. Peça, portanto, que não deve ser descartada.
A história francesa do livro produzida nos últimos trinta anos tem sido objeto constante da crítica de Chartier.
Para o historiador, os estudos franceses privilegiaram pesquisas quantitativas sobre as obras com o objetivo de estabelecer as diferenças culturais nas sociedades dos séculos 16 e 18.
Evitar as análises que constroem as distâncias entre as práticas culturais e as oposições sociais é um esforço necessário para se estabelecer novos campos. "A perspectiva de análise deve se modificada, preocupando-se em desenhar, primeiro, as áreas sociais nas quais circula cada corpus de textos e cada gênero de impresso".
Em sua metodologia, o historiador francês privilegia os objetos –e "não as classes ou os campos"– e propõe novidades, como a compreensão do fato de textos similares serem assimilados por grupos sociais distintos e a valorização do aspecto gráfico da obra.
"Observar como as formas materiais afetam o sentido do leitor, localizar a diferença social nas práticas mais do que nas diferenças estatísticas são muitas das vias possíveis para quem quer entender, como historiador, essa produção silenciosa que é a atividade leitora", escreve Chartier.
Nesta pequena-grande obra, Chartier apresenta ao público brasileiro sua versão da história da cultura francesa e introduz ao leitor a reflexão sobre a construção da imagem do autor, a formação das "comunidades" de leitores e o significado das bibliotecas para a história do livro.
"A Ordem dos Livros" traz boas questões para os historiadores e, sem dúvida, é leitura indispensável para todos aqueles que têm no livro o seu objeto de pesquisa.

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