São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
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Os dez mais melancólicos

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Foi em 1973 que Gore Vidal escreveu seu famoso ensaio sobre ``Os Dez Livros Mais Vendidos" da lista do ``New York Times". Há pouco tempo, para um número especial de ficção (27/6/94), a revista ``The New Yorker" encomendou a Anthony Lane um artigo semelhante. E no Brasil –o que são, afinal, os dez livros mais lidos de acordo com a última lista da Folha?
É uma lista (veja quadro) até certo ponto surpreendente. Ao contrário das listas americanas, que raramente incluem autores estrangeiros, a brasileira é mais cosmopolita: três brasileiros, um português, um colombiano, um inglês e quatro americanos. Ao contrário, também, de quase todas as listas do ``New York Times", a lista brasileira não se limita ao gênero do best seller, em si; mesmo descontando aqueles livros exigidos pelo vestibular (Saramago e Rubem Fonseca), nossa lista inclui um García Márquez e um Luís Fernando Veríssimo. Nem tudo vai tão mal como se pensa.
Não que a lista seja motivo para comemoração. Os dois livros mais vendidos são, com certeza, os piores, sob qualquer critério, e para um explorador novato a literatura dita popular tende a ser mais um motivo de melancolia do que de entretenimento. De qualquer forma, é uma experiência no mínimo educativa atravessar sistematicamente essas 3.270 páginas, no curso de uma semana.
Em décimo lugar, vem ``A Grande Arte" (1983), de Rubem Fonseca, que talvez não seja tão grande assim, mas nasce de uma grande idéia: escrever um romance policial no Rio de Janeiro. O resultado combina o realismo engajado, o estilo ``vida-podre" da ficção de resistência dos anos 70, com o ``hard-boiled" americano clássico. Mas Rubem Fonseca tem uma ambição ainda mais alta: seu livro quer ser, também, uma espécie de diagnóstico do verdadeiro Brasil. Estilisticamente, parece incerto de seus meios. Como o cigarro, que você fuma exatamente porque faz mal, ``A Grande Arte" é um romance para ser lido não porque é bom, mas porque é ruim. No final das contas talvez não seja muito mais do que um policial um pouco forçado e cabe perguntar o que um livro desses está fazendo na lista do vestibular.
Um padre disse a um rabino: ``Você devia experimentar presunto. É uma delícia". Respondeu o rabino: ``Você devia experimentar uma mulher. É melhor que presunto". Contada em outras palavras, esta é a melhor piada e a única coisa que se salva neste caldo de melaço que é ``O Rabino" de Noah Gordon, em nono lugar na lista. Gordon está para Bashevis Singer como Xitãozinho e Xororó para Villa-Lobos.
Incomparavelmente melhor, e uma surpresa agradável é ``O Cliente", de John Grisham, em oitavo lugar. Sem outro objetivo que o do entretenimento, Grisham, além de malabarismos da trama e senso de ritmo, tem ainda uma grande virtude: algum senso de humor. O modelo é cinematográfico (o espetáculo da jurisprudência e as aventuras de advogado), mas o livro se sustenta por si e –podem acreditar– é melhor do que o filme. Para quem está chegando do Monte Parnaso e adentrando as terras do best seller, esta é de longe a melhor opção da lista.
Foi Adorno quem disse, certa vez, sobre Proust, que ele era um autor capaz de fazer o leitor se sentir mais inteligente do que é. José Saramago não cai nunca em semelhantes vícios de elegância: escreve com toda a pompa e jamais esconde um lapso de percepção, ou um dito moral. Seu ``Memorial do Convento" (1982) entra na lista por força do vestibular e de qualquer forma não pode ser julgado ombro a ombro com Grisham ou Sidney Sheldon. Bem ou mal, pertence à literatura, não à lista. É um grande romance católico de esquerda. (Incidentalmente, serve para mostrar que a homogeneização ortográfica é desnecessária. Não é a ortografia que dificulta a leitura: é muito mais a sintaxe, o que não tem conserto –e a distribuição dos livros, que tem.)
O novo romance de García Márquez, ``Do Amor e Outros Demônios", retorna, como o de Saramago, ao século 18, neste caso à Colômbia colonial. Márquez escreve com fluência e uma convincente facilidade. Sua simpatia já soa, talvez, um pouco artificial, mas depois de ler Noah Gordon, Sidney Sheldon, Frederick Forsyth e Paulo Coelho, a vontade que se tem é a de indicar García Márquez pra mais um Prêmio Nobel. A combinação do ``fantástico" com o religioso e o escatológico, do amor puro com a sociologia da casagrande-e-senzala e com o anticlericalismo, do grotesco e do arabesco com o cheiro das goiabas: tudo isto parece uma receita, mas a fórmula, afinal, é dele mesmo. Talvez Márquez não tenha escrito outro livro depois de ``Cem Anos de Solidão", que é o início e o fim de toda sua obra e de um punhado de outros autores também. ``Do Amor e Outros Demônios" é, talvez inevitavelmente, só mais um García Márquez, escrito por García Márquez. (E, diga-se de passagem, brilhantemente traduzido por Moacir Werneck de Castro).
Em quinto lugar está ``O Punho de Deus". O jogo de Forsyth é o de escrever como ``insider", nos bastidores da política internacional. Com a queda do Muro, a alternativa para escritores de espionagem passou a ser a Guerra do Golfo. Espiões e contra-espiões, siglas, comandos, memorandos e uma lista de personagens que inclui Thatcher, Bush e Saddam Hussein, além de banqueiros e agentes do Mossad: é um livro para meninos grandes, um Tintin para adultos. As 557 páginas ficam anunciando um suspense que não vem e o major Mike Martin deve ser o agente secreto mais sem charme da história da literatura.
Tudo o que Forsyth não tem –charme, inteligência, ironia, humor– pode-se encontrar de sobra nas ``Comédias da Vida Privada" de Luís Fernando Veríssimo, uma reunião de 101 crônicas. Ninguém disputa com Veríssimo a condição de grande mestre da crônica brasileira. Ele tem o ouvido perfeito para os identificadores, os automatismos cotidianos que são a marca de cada um de nós. Se fosse cruel por natureza, seria devastador. Mas é um escritor generoso, sem ser piegas. É um alento encontrá-lo no quarto lugar.
Chegamos finalmente a Sidney Sheldon. No seu ensaio de 20 anos atrás, Gore Vidal lamentava o fato de que o modelo narrativo, então, não era mais literário, mas cinematográfico: cada livro parecia escrito para virar filme. O que ele não sabia é que aqueles eram os bons tempos. O modelo, hoje em dia, não é mais o cinema, mas a minissérie de televisão. É difícil saber se existe mesmo um ``Sidney Sheldon" autor, ou se este é o nome de algum escritório de criação de romances, como existem vários nos EUA. ``Nada Dura Para Sempre" não nos mostra nada além de um mecanismo enrijecido do melodrama, uma verdadeira tecnologia do sentimentalismo. É ``O Direito de Nascer" em tempos do politicamente correto.
A narrativa convencional de mistério é uma perseguição frustrada, mas finalmente recompensada de explicar o irracional, ou o incompreensível. Seu modelo segue de perto a ``peripécia" e ``reconhecimento" descritas por Aristóteles. Nosso grande campeão de vendas, Paulo Coelho, parece fazer justamente o contrário: irracionaliza o cotidiano, para fazer da experiência algo de ``poético" e ``transcendental".
Mas talvez não seja justo fazer uma leitura literária de ``Nas Margens do Rio Piedra Eu Sentei e Chorei", porque não se trata, a rigor, de literatura: é uma obra de não-ficção –de auto-ajuda e pregação religiosa– que se vale, apenas, da ficção para atingir seus objetivos. Escrito para o leitor de concentração mínima, com narrativa direta, em capítulos curtíssimos e diálogo simples, cheio de aforismos, ou ``lições de vida", não tem virtualmente nada que não seja um clichê. (Clichês não têm dono, mas um deles, no caso tem: a história da página 224 é o resumo de um conto de O. Henry (1862-1910), ``O Presente dos Magos".) Perto de Paulo Coelho, um Jorge Amado, que já foi quase uma espécie de guia literário do Brasil, parece hoje um clássico, escrevendo em latim. Parece, de fato, um representante daquela velha arte que se praticava por aqui, com algum sucesso popular, até algum tempo atrás: a literatura.

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