São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
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A primeira biografia de Amado

MARIA CRISTINA FRIAS
ENVIADA ESPECIAL A FRANKFURT

Erramos: 20/10/94

O nome do agente literário norte-americano que está escrevendo a biografia de Jorge Amado é Thomas Coulchie, e não Couchie, conforme foi publicado.
Thomas Couchie, 5l, é agente literário de escritores do porte de Manuel Puig, Laura Esquivel e Jorge Amado. Foi ele quem intermediou a venda dos direitos autorais de ``Quatro Peças", de Sam Shepard, que a editora Paz e Terra vai lançar este mês. Por sugestão do próprio autor de ``Gabriela, Cravo e Canela", Colchie mudou de métier e se tornou ele próprio um escritor. Seu primeiro personagem: Jorge Amado.
Receoso de perder o impacto, o estreante não quer adiantar muito do que descobriu em seis anos de pesquisas em diferentes países e em inúmeras entrevistas. Ainda tem mais um ano para concluir o texto, que só sai em 96. Ele ainda não decidiu se publica simultaneamente nos Estados Unidos e no Brasil ou se dará prioridade à edição brasileira. O projeto é ambicioso. Além de retratar os 82 anos de vida do biografado, pretende fazer uma análise da obra e traçar um painel político da época.
Segundo ele, o livro vai narrar fatos inéditos do escritor baiano –que ele diz ter características de um coronel– e de outros com quem ele conviveu. Como Pablo Neruda, que ele menciona nesta entrevista exclusiva à Folha , em que ele conta também que Amado foi investigado pela FBI.
Folha - Como você começou a trabalhar com Jorge Amado?
Thomas Couchie - Eu era um jovem agente quando Alfredo Machado, da Editora Record, disse a Jorge Amado: ``Existe um jovem Don Quixote, em Nova York, que está tentando ganhar a vida vendendo literatura brasileira e precisa muito de ajuda. Por que você não dá uns livros para ele?"
Naquela época, ele já era bem conhecido. A Knopf havia publicado ``Terras do Sem Fim" e não quis reeditá-lo. Estávamos no começo da Guerra Fria e talvez houvesse essa pressão nos EUA contra ele, que era considerado muito comunista. Eu descobri nas minhas pesquisas para a biografia, que o chefe do FBI estava atrás de Jorge. Pessoas o seguiam, trabalhando com o departamento do Estado.
E tinha coisas fantásticas ditas sobre ele, como que Jorge era fluente em russo. Jorge é uma pessoa extraordinária em muitas coisas, mas uma coisa que ele não é, e nem vai ser, é fluente em russo. Outra história: que ele tinha sido treinado em Moscou, e nunca foi. Então, toda a literatura mais comprometida de Jorge não foi editada nos Estados Unidos. E Jorge me autorizou a vender seus livros.
Na época, os acadêmicos não gostavam de Jorge porque achavam que ele era `` gostoso demais e não era suficientemente pós-estruturalista". Mas vendemos vários livros dele. Quando escreveu ``Tocaia Grande", 14 editoras estavam atrás deste livro. Ele foi tão disputado que chegamos à cifra de um quarto de milhão de dólares. Foi a cifra mais alta paga a um autor latino-americano na época.
Folha - Por que escrever sobre ele e não outro escritor?
Couchie - Jorge, além da importância que tem mundialmente, mudou o mundo editorial no Brasil. De ``Cacau" para frente, ganhou sua vida como escritor. Antes dele, os autores eram pessoas que escreviam aos domingos. Ele criou quase que um modelo para a América Latina.
Folha - Como era o relacionamento entre ele e os editores?
Couchie - Jorge, mesmo sendo comunista, não era muito sectário, como alguns eram. Pablo Neruda foi feroz –pelo menos publicamente... Privadamente, era altamente capitalista...(risos)
Eu descobri, pesquisando na antiga Tchecoslováquia sobre Jorge, uma carta de Neruda ao seu tradutor em tcheco, um famoso escritor, que era um alto cargo no partido. Neruda escreveu: ``Por que não estou recebendo nada do pagamento dos direitos? Se você não pode mandar o dinheiro, mande um carro. Eu sei que os carros tchecos estão na Argentina" (risos).
Mas todos que eu entrevistei lá disseram que Jorge realmente era comprometido com o partido e o comunismo. Não se importava com a falta de dinheiro e ainda ajudava muita gente.
Folha - Mas por que exatamente o senhor escolheu Jorge Amado?
Couchie - Depois do sucesso de ``Tocaia Grande", em 84, a editora americana queria uma biografia sobre Jorge. Investiguei e vi que não existe mesmo até hoje. Só homenagens, tipo ``vida e obra", baseadas na mitologia e não em documentos. Jorge Amado me chamou e disse: ``Soube que você anda procurando um biógrafo para mim. Tenho uma preferência: você". Fiquei chocado.
Fui tradutor, mas só tinha escrito romances juvenis, nunca publicados. Eu respondi que não. Todo mundo pensaria que, como seu agente, haveria um conflito de interesses enorme e, além disso, sou seu amigo. Jorge Amado respondeu: ``Não se preocupe. Vou lhe ajudar. Eu não quero saber o que você vai descobrir. A única coisa que eu quero é que você não faça escândalo. No contexto da verdade, pode dizer qualquer coisa". E ele me enviou a algumas pessoas que realmente falaram coisas delicadas –e que eu vou usar. Ele me disse: ``De agora em diante, pense em mim como seu personagem".
Folha - Em que ponto está a biografia?
Couchie - Estou terminando as pesquisas, que levaram seis anos. O que eu quero entender é esse maniqueísmo tradicional na América Latina. Numa certa época, eram extremos: ou a pessoa era de esquerda, ou de direita. Os EUA eram sempre o inimigo. Não vou falar só de Jorge Amado, um gigante do século 20, tanto na literatura, como na vida político-social, mas dar o meu entendimento de como funcionava isso tudo. Quero traçar esse painel político. O trabalho para esta biografia me levou muito longe. Entrei na história de várias pessoas e povos.
Folha - O senhor vai contar também aspectos mais picantes?
Couchie - Ah, vão entrar sim. Muitos dos seus amigos me disseram que, jovens, tinham medo dele em relação às mulheres. Ele era perigosíssimo... O Oswald de Andrade disse que ele era um Rasputin. Havia muita relação entre os personagens e a vida pessoal dele.
Folha - O senhor buscou um retrato neutro ou já partiu do pressuposto de que se tratava da biografia de um amigo?
Couchie - O Alfredo Machado me disse: ``Você vai escrever uma grande biografia e vai perder um grande amigo". Mas eu acho que não. Depois dos 40, ele passou a aceitar críticas fortes. Ele fez uma autocrítica depois de Stalin.
Alguns autores escreveram coisas horríveis sobre suas obras e ele aceitou. Ele foi amigo de críticos ferrenhos. Bastante cedo, ele decidiu: eu sou escritor para o público; os críticos, façam o que quiser. Isso é positivo, mas também é um lado coronelista dele. Jorge tem a capacidade de transformar seu pior inimigo em amigo. Agora, o fato de ser agente dele, também contribuiu. Sou há anos uma pessoa que cuida dos interesses dele. Não sou crítico, editor. Ele não precisava se preocupar em me impressionar. Ele é mais sincero comigo do que com outras pessoas. A mim, ele pode dizer: ``Quero comprar essa casa; dormir com aquela editora..." Sei do dia-a-dia dele.
Folha - Como, por exemplo...
Couchie - Ah, você vai ler depois. Mas vou contar esses casos picantes quando forem importantes para entender Jorge Amado. Não vou encher o livro de casos amorosos porque isso daria uma visão falsa do biografado.
Folha - Jorge Amado vai ler o livro antes da publicação?
Couchie - Sim, vai corrigir erros eventuais.
Folha - E o que não gostar?
Couchie - Se não gostar, não vou mudar. Vou mesmo perder um grande amigo, mas fazer um bom livro. Mas ele não vai se surpreender. Embora às vezes evitasse falar sobre coisas desagradáveis, ele me falou coisas delicadas. Acho que ele queria que eu dissesse as coisas que ele não pode dizer. Eu posso interpretar e ser bastante atrevido.
LEIA MAIS sobre a Feira de Frankfurt à pág. 6-8

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