São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
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A VIA CRUCIS DO SERTÃO

BERNARDO CARVALHO
ENVIADO ESPECIAL A MONTE SANTO (BAHIA)

Em 1963, quando Glauber Rocha e sua equipe entraram em Monte Santo, no sertão da Bahia, para filmar ``Deus e o Diabo na Terra do Sol", a população acreditava que cinema era mais coisa do diabo que de Deus.
``Você conhece a Yoná (Magalhães)? Aquela beleza –e boa! Ela me perguntou se eu era capaz de conversar no filme de Deus e o diabo. Eu respondi que não trabalhava para o diabo. Ela disse: `A senhora tem que trabalhar amanhã'. E eu digo: `Não senhora. Não trabalho, não' ", conta Eduíge Rosa Cardoso, 86.
Dona Eduíge hesitou muito antes de aceitar ser filmada –e tomou gosto. Ainda hoje, enxergando apenas intensidades de luz mas não mais as figuras a sua volta, e sem conseguir levantar da cama, ela relembra o que gritou carregando uma pedra na cabeça pelos 3 km do caminho da Santa Cruz, que sobe o Monte Santo até o pico e a capela construída no século 18.
``Botei a pedrinha de 2 kg na cabeça e o povo todo gritou: `Doida!'. Eu respondi: `Não sou doida nem será. Quem da Santa Cruz virá desarmar!?'. Aí os artistas gritaram: `Arreda pedra, passe pra cá!'. Foi um medo danado. Se Deus quiser não morro de medo, porque não morri nesse dia. Passei tremendo. Disse: `Valei-me minha Santa Cruz, livrai-me dos infernos, que eu também não sei o que estou fazendo. Ave Maria, cheia de graça!", recorda.
Foi assim que dona Eduíge entrou para o cinema, encarnando uma beata –sem saber que participava de um dos filmes mais importantes do cinema brasileiro. Hoje, ``ser artista" é a melhor profissão que conhece. ``Gosto de trabalhar em filme. Que Deus me perdoe se for pecado. Gosto", diz.
Paulo Gil Soares, 59, que hoje é diretor de projetos especiais da Rede Globo –e foi assistente de direção e diálogos, fez o vestuário, a cenografia e a escolha de ambientes e figurantes de ``Deus e o Diabo"–, lembra de como a atmosfera e a tradição mística e religiosa estavam entranhadas na vida do lugar, a ponto de implodir os limites entre ficção e realidade, confundindo representação e real.
``Dona Eduíge era uma velha fantástica. Ela carregava uma pedra na cabeça. O Geraldo del Rey, que fazia o vaqueiro Manuel, resolveu um dia colocar uma pedra na cabeça também e subir o caminho da Santa Cruz. Isso está no filme, mas a luz é diferente. Já tínhamos acabado de filmar, no final da tarde, e ele resolveu fazer aquele exercício stanislavskiano. Para sentir o que era aquela experiência mística. A dona Eduíge, por exemplo, acreditava que o Lídio Silva, que interpretava o personagem do beato Sebastião, era realmente um beato", diz.
Monte Santo nasce, na realidade, de uma experiência religiosa. Segundo Durval Vieira de Aguiar em seu ``Descrições Práticas da Província da Bahia" (1888), principal fonte de Euclides da Cunha (1866-1909) para a descrição que faz das cidades do sertão baiano em ``Os Sertões", Monte Santo originou-se de uma simples fazenda de gado, onde, em 1785, um missionário italiano estabeleceu um povoado e uma capela.
Frei Apolônio de Todi (1748- 1820), capuchinho do convento da Bahia e missionário no interior do Sergipe e da Bahia, fez construir ali, com a mão-de-obra local, uma via sacra de 3 km de pedra pela encosta do monte, com 21 capelas e uma igreja (Santa Cruz) no alto, transformando a cidade em centro de romaria.
``Há muitas lendas aqui. Como a do galo e da jibóia de ouro que apareciam na serra. Quando o frei Apolônio viu o galo e a jibóia, que eram um sinal do ouro que havia no lugar, cortou as mãos e deixou o sangue cobrir os dois animais, para que não viessem para cá pessoas que pudessem destruir o santuário", diz Hildegardo Cordeiro Amador Pinto, o ``seu" Dedega, 52, que interpretou o noivo em ``Deus e o Diabo".
Em 1892, um ano antes de fundar o arraial de Canudos, Antônio Conselheiro passou por Monte Santo e restaurou algumas das capelas ao longo da subida. Em ``Os Sertões", Euclides da Cunha escreve: ``Ao chegar à Santa Cruz, no alto, Antônio Conselheiro, ofegante, senta-se no primeiro degrau da tosca escada de pedra, e queda-se estático, contemplando os céus. (...) Ao abeirar-se do altar-mor, porém, ergue o rosto pálido, emoldurado pelos cabelos em desalinho. E a multidão estremece toda, assombrada... Duas lágrimas sangrentas rolam, vagarosamente, no rosto imaculado da Virgem Santíssima..."
Lampião também costumava vir a Monte Santo em peregrinação e subir o caminho da Santa Cruz. Nunca atacou a cidade, embora cometesse crimes pelas fazendas da região. Monte Santo é o cenário mítico onde se cruzam misticismo e cangaço –e onde é difícil separar passado e presente, ficção e realidade.
``A ação do filme se passa logo após a morte de Lampião. Enquanto filmávamos os camponeses tinham medo que tivéssemos trazido de novo a guerra para a região", diz Paulo Gil Soares.

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