São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
Texto Anterior | Índice

O naturalismo que criou o Brasil

MANUEL DA COSTA PINTO
DA REDAÇÃO

A expansão européia, na Era dos Descobrimentos, significou também a expansão de seu olhar sobre o novo, o surgimento de uma linguagem em que artistas, naturalistas e naturalistas-artistas criaram, através de aquarelas e desenhos, um código visual para o desconhecido.
É essa miríade de imagens, fruto do duplo impulso de conhecer e imaginar o Novo Mundo, que está sendo lançada nos três volumes que formam a série }O Brasil dos Viajantes e que será exposta no Masp (Museu de Arte de São Paulo) a partir da próxima quinta-feira, dia 20.
A exposição e os livros são o ponto culminante de um trabalho de pesquisa iniciado em 1990 pela professora Ana Maria de Moraes Belluzzo, do departamento de história da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP).
Com apoio da Pró-reitoria de Pesquisa da USP e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), ela e um grupo de alunos da FAU criaram uma abordagem inovadora dos relatos dos viajantes europeus.
A pesquisa não se preocupou em reconstituir a história factual das viagens, mas em estabelecer as conexões entre sua iconografia e o universo cultural dos artistas e cientistas das expedições.
No ano passado, o projeto recebeu o apoio da empresa Odebrecht –o que possibilitou montar a exposição do Masp e editar os volumes, que indicam as diretrizes conceituais do trabalho.
Sua questão inicial é a construção de uma identidade brasileira pelo olhar colonizador, através de representações que acabam desvelando a própria identidade européia, sua maneira de distinguir o ``mesmo" do ``outro".
A esse conflito de culturas, que se dá no plano dos territórios conquistados, o livro acrescenta um outro embate: o choque ``temporal" entre percepções distintas de realidade, entre contextos científico-culturais descontínuos.
Não por acaso, uma das referências explícitas de Belluzzo é o filósofo francês Michel Foucault, morto em 1984.
Em ``As Palavras e as Coisas", Foucault afirma que as ciências naturais (botânica, zoologia), assim como outras disciplinas que estudam os seres vivos (a biologia, a economia, a filologia etc), devem suas transformações estruturais a ``discursos", estratégias de linguagem que ``criam" a realidade da experiência, delimitando o campo objetivo do saber.
Dessa forma, Foucault rejeita duas noções convencionais da ciência: a objetividade (inexistente, já que o mundo é feito de palavras, não de coisas) e a continuidade (segundo ele, uma construção fantasiosa dos cientistas, desejosos de situarem seus saberes no ápice de uma evolução qualitativa).
Foucault estuda a evolução desses saberes desde o renascimento até o século 20 –ou seja, um arco temporal semelhante ao de ``O Brasil dos Viajantes", que vai do século 16 ao 19.
``Meu parâmetro na escolha das imagens foi seu significado estético, sua forma de recortar e representar o mundo", diz Ana Maria Belluzzo a respeito do trabalho de seleção das obras. ``A idéia de objetividade não faz sentido se você lida com um mundo em que as coisas só existem dentro da linguagem", conclui.
Os primeiros viajantes, no século 16, são talvez aqueles que produziram as imagens mais estranhas à nossa concepção de natureza, através de formas de representação como as alegorias ou os ``gabinetes de curiosidades".
As alegorias são composições fragmentárias e metafóricas, em que os elementos visuais convivem lado a lado com temas pictóricos que lhe são estranhos (anacronismos arquitetônicos, como índios em meio a colunas de templos antigos, animais deslocados de seu habitat etc).
Já os ``gabinetes de curiosidades" eram coleções de objetos do Novo Mundo, como cabeças de animais, plumária de pássaros, plantas exóticas e minerais.
(Um bom exemplo dessas duas formas está reproduzida no alto desta página. ``América", de Jan van Kessel –que, por motivos técnicos, não estará no Masp– é uma alegoria que combina vários símbolos convencionais do continente; mas também reproduz, em sua tela central, um gabinete no qual os índios estão cercados de motivos exóticos).
Estas duas composições –a alegoria e o gabinete– pertencem à forma renascentista de representação: um saber que coleciona imagens, estabelecendo entre elas uma relação de semelhança e contiguidade –da mesma maneira que, de acordo com Foucault, a ciência da época compreendia os elementos da natureza segundo critérios como a ``simpatia" (ou atração) e ``convenientia" (proximidade).
No espaço de quase um século, porém, uma outra ordem do real passa a imperar, numa brusca ruptura com o período precedente.
Naturalistas e humanistas passam a apreender os objetos por sua generalidade morfológica. O modelo por excelência dessa representação clássica é a ``Taxionomia universalis", pela qual Lineu (1707-1778) classifica o mundo natural.
No plano iconográfico, isto significa, segundo Ana Maria Belluzzo, o abandono da dispersão das ``imagens" em favor do nexo que se estabelece entre as ``formas" abstratas. Daí a profusão de detalhes anatômicos dos animais e plantas registrados pelos desenhos do século 18.
Esta ``mirada classificatória" do mundo natural só será ultrapassada, no século 19, pelo universo dinâmico e funcional concebido por naturalistas como Alexander von Humboldt (1769-1859).
Sua idéia ``paisagística" da botânica visa expressar as conexões elementares de cada ser com o todo –numa idéia de totalidade que coincide com a consolidação das academias científicas européias e prepara o cenário das grandes expedições do século 19.
As paisagens, aliás, representam um dos principais recortes da mostra, e ocupam o último volume da série. Resultado de expedições como a de Langsdorff, da qual participaram os pintores Moritz Rugendas, Hercule Florence, Adrien Taunay, elas atestam o caráter estético desse olhar romântico e panorâmico sobre a natureza.
Assim, por exemplo, não surpreende que o mesmo desenho de uma anta, feito pelo engenheiro Franz Keller no Paraná, em 1865, reapareça, anos mais tarde, num livro sobre o rio Amazonas...
Afinal, a flutuação dessas imagem, suas mutações ao longo de quatro séculos de apropriações por diversos autores e meios de representação (aquarelas, desenhos, tapeçarias etc), indicam o caráter ``discursivo", ``linguístico" –e não empírico, objetivo– das mudanças do saber científico.
Obviamente, essa organização das imagens da mostra e do livro revela a opção por um modelo nominalista de interpretação. Mas talvez o maior mérito de ``O Brasil dos Viajantes" tenha sido, justamente, a descoberta de uma estética das expedições científicas.
A mostra ``Brasil dos Viajantes" estará no Masp (av. Paulista, 1.578, São Paulo) de 20 de outubro a 18 de dezembro. O livro, editado pela Metalivros, não será comercializado, mas doado a bibliotecas, universidades e instituições culturais.

Texto Anterior: Que planetas são visíveis a olho nu?
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.