São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994 |
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Havaianas na terra de Deus
BERNARDO CARVALHO
``Não foi fácil. Foi uma filmagem difícil. A gente tinha que caminhar pelo alto sertão. A produção era apertada. Muita coisa tinha que ser feita de primeira. O Glauber tinha a noção da cena, mas improvisava muito. Ele ficava atrás da câmera te atiçando e você ia perdendo o controle. Quando cheguei vestido de Corisco na cidade houve uma correria, porque acharam que era Corisco mesmo", diz Othon Bastos, 61. Originalmente, o ator baiano Adriano Lisboa devia fazer o papel de Corisco. Mas as filmagens atrasaram e Othon Bastos o substituiu no papel. O duelo final, entre Antonio das Mortes (interpretado por Maurício do Valle, que morreu no último dia 7) e Corisco, foi modificado em razão de Bastos ser mais baixo que seu adversário. ``Estávamos fazendo trabalhos sobre Brecht na Bahia e Glauber incorporou a experiência brechtiana. O filme tinha flashbacks, e ele eliminou. Depois, no copião, tivemos a idéia de colocar o Corisco fazendo a voz de Deus. A voz de Deus e do diabo é a mesma. Quando o espectador ouve as duas vozes, tem uma lembrança, liga uma à outra", afirma Bastos. ``Fiquei 15 dias em Monte Santo. Os outros atores ficaram mais tempo. As filmagens duraram uns três meses. Os homens ficavam na casa dos romeiros e as moças na casa dos padres. As pessoas eram muito dadas. Faziam docinhos para a equipe. Hoje há essa lenda depois que passa uma equipe de filmagem ou gravação por uma cidade do interior nada mais nasce ali. Não foi assim. O Geraldo del Rey foi quem mais subiu o Monte Santo. Fez até questão de carregar uma pedra de 30 kg na cabeça, como os antigos romeiros. Foi também o homem que consertou todos os relógios da cidade quando estava de folga", conta o ator. Durante as filmagens no caminho da Santa Cruz, Walter Lima Jr., que fazia a assistência de direção, ficava ao pé da escadaria, impedindo que as pessoas subissem com sandália havaiana e bob nos cabelos. ``Era a maior moda. As pessoas adoravam andar de bob. O filme se passava entre 38 e 39, logo após a morte de Lampião. Era o fim do cangaço e a gente tinha que tomar cuidado com os objetos de cena, a aparência das casas etc", diz Paulo Gil Soares. ``O Maurício do Valle ficava muito tempo sem filmar. Com isso, começou a namorar e, numa dessas, começou a namorar uma viúva. De repente, passou a se sentir perseguido pelo defunto e ia para a rua aos gritos no meio da noite", continua Soares. Dona Eduíge Rosa Cardoso lembra muito bem da figura do ator: ``O Glauber não falava nada. Não sei se gostava do que eu fazia. Ninguém me passava o gato. Quem prosava comigo era o Maurício. Ele disse que era viúvo e que eu tinha que casar com ele. Eu disse: `Você é muito é doido! Eu tenho marido e nunca fui dama, não.' Ele ria que se rolava". ``O Glauber era uma pessoa às vezes doce e às vezes temperamental. No trabalho mesmo, era um diretor muito enérgico. Ele se zangava. O que ele tinha para fazer um filme era muito pouco. Não havia os equipamentos sofisticados de hoje. As tomadas eram repetidas muitas vezes. O Durval (Olímpio Santana, 78, que já não se lembra do filme) fazia o papel de um nordestino numa luta. Havia um senhor, `seu' Ioiô, já velhinho, a quem o Glauber tinha ensinado a dizer: `Esse homem é um louco' quando o Durval caísse no chão. Mas ele não conseguia acertar; dizia: `Esse homem é um lobo'. E o Glauber enlouquecia, mandava o velhinho repetir e ele errava de novo", diz Dedega. Na verdade, apesar do espanto provocado pelas filmagens de ``Deus e o Diabo", Monte Santo sempre teve uma queda para as encenações. ``Há muitos anos, o pessoal da cidade já fazia teatro. Tenho fotos de 1918, 1930. Em 7 de setembro e na primavera havia desfiles gigantes, com figuras históricas, seguindo rigorosamente o figurino, o que era muita ousadia para uma cidadezinha. Depois do Glauber, a equipe da Globo voltou aqui para gravar `O Pagador de Promessas'. Havia tomadas muito bonitas que foram cortadas, como uma procissão de protesto com tochas acesas pela cidade. Era problema de conflito de terras e essas coisas", conta Dedega. A própria dona Eduíge parece fazer jus à tradição cênica da cidade. Inventou, por exemplo, uma cena onde uma índia da região sobe em uma árvore fugindo dos portugueses que dizem querer casar com ela: ``Eu tinha coragem de fazer um filme disso. Quer fazer agora? Minhas histórias dão para fazer quatro fitas e ainda sobrar conversa. Dá para fazer um monte de filme, mas não acho quem tenha a fita". ``Deus e o Diabo" é um marco na vida de dona Eduíge. Quando foi chamada para fazer figuração, chegou a fugir: ``No dia seguinte andei me escondendo para não ir. Fui perguntar para a Rita como é que tinha sido e ela disse que tinham andado daquela capela até a outra. Fiquei como uma besta calada, mas não gosto de calar, não". Foi quando descobriu sua vocação. Colocou uma pedra na cabeça e subiu o monte no papel de uma beata. Dona Eduíge assistiu a ``Deus e o Diabo" a convite do padre de Monte Santo há muitos anos –e ficou muito impressionada (hoje, o efeito não seria o mesmo; o vídeo saiu de catálogo há dez anos e as cópias existentes estão em um estado deplorável, com planos praticamente invisíveis). Dona Eduíge espantou-se com a cena em que representa uma beata carregando uma pedra na cabeça morro acima e clamando: ``Valei-me minha Santa Cruz! É a maior do Brasil". ``Quando vi a pedra, me deu um passamento do tamanho desta casa", diz. Texto Anterior: ``Eu torcia o corpo de medo" Próximo Texto: Um trecho do mundo mítico do sertão Índice |
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