São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
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``Eu torcia o corpo de medo"

BERNARDO CARVALHO
DO ENVIADO ESPECIAL A MONTE SANTO

O escrivão Hildegardo Cordeiro Amador Pinto, o ``seu" Dedega, 52, estava esculpindo uma de suas peças sacras no alto da Santa Cruz quando avistou um grupo de estranhos se aproximando pelo tortuoso caminho de pedras. Foi a primeira vez que viu Glauber Rocha e a equipe técnica de ``Deus e o Diabo na Terra do Sol", em 1963.
``O Dedega era uma pessoa muito reprimida, que fazia esculturas, pequenos ex-votos. Eu achava que se ele não saísse de lá, ia enlouquecer. Ele me ajudou muito, abriu portas, cedeu objetos, armas. Quando voltei lá para as gravações de `O Pagador de Promessas', da Globo, em 88, eu o encontrei casado e com família", diz Paulo Gil Soares, assistente de direção e cenógrafo do filme.
Dedega acabou fazendo o papel do noivo, que é castrado por Corisco, no filme de Glauber Rocha. ``Ele escolheu Monte Santo por causa do caminho, e porque tinha ligações com Canudos e Lampião. As pessoas da equipe foram treinando como subir a via sacra. As pessoas daqui têm uma resistência tremenda nesse sentido. Tem pessoas de 90 anos que ainda sobem. A dona Eduíge subia sem problemas, com uma pedra na cabeça. A dona Antonia, que devia ter uns 90 anos na época e morava num povoado aqui na roça, fez o papel da mãe do Geraldo del Rey. O próprio Glauber gritava entusiasmado com a atriz que era aquela sertaneja", diz Dedega.
Muitos habitantes de Monte Santo lembram do medo provocado inicialmente pelas filmagens, sem saber se estavam diante da realidade ou de uma representação. ``Naquele tempo a gente era trouxa mesmo. Na hora de morrer, eu disse: `Vou cair fora, vão me matar!'. A Yoná Magalhães dizia: `Não vai morrer ninguém, não. E eu respondia: `Vige, uma hora dessa e a gente ainda não comeu. Vai morrer de fome' ", conta Domingas Pereira da Silva, 50, que é sobrinha de dona Eduíge e também estava entre os figurantes da procissão filmada no alto do Monte.
``Eles explicavam à gente. Foi lá em cima do Monte que eles filmaram a morredeira. Eu pensava: `É hoje que eu vou morrer mesmo'. O sangue era de chocolate. Eles cobriam a gente de chocolate. Mas quando davam o tiro, eu torcia o corpo de medo", diz.
Hoje, Domingas só tem medo do que pode acontecer com o filho (``Já tomei até três Diazepan de noite para poder dormir", diz), radialista em Euclides da Cunha, a 30km de Monte Santo, perseguido por falar contra o clientelismo da política local, que dá um aspecto medieval ao sistema de poder e organização social da região, controlada pelo PFL.
``Será que esse povo nunca toma um chá de vergonha em Monte Santo? Não tenho pena da miséria do povo daqui, porque quanto mais apanham, mais eles gostam. Votei no Lula. Nem que morra o diabo, mas votei na equipe toda. Porque esse outro partido é contra a igreja. Já prenderam padre. Só eles podem falar. Aqui o pessoal ganha um pacote de leite. É o que segura na hora de pegar na caneta. Sou revoltada. Se eu não como de lá, tenho direito de desabafar, né? E na caneta eu desgraço com eles", afirma.
Domingas se orgulha, com apreensão, da atividade do filho. ``Ele é ousado. Não pode mais pisar aqui. Eu, no meu lugar, ficava quieta. Porque pobre não tem valor. Mas ele diz as coisas. O pessoal vem ameaçar. Eles pressionam. Dizem que sequestraram ele, e depois jogaram no buraco do vento. Tem dia que fico tremendo. Não tenho nem como botar advogado. Confio em Deus, que é o melhor advogado. Jesus não era nem fofoqueiro, não falava dos outros, e foi crucificado...", diz.
``Embora fossem figurantes do filme, você descobre que alguns se transformam em figuras hieráticas, como uma mulher sentada numa pedra com um fuzil no colo. Ela é todas as guerrilheiras do mundo", afirma Paulo Gil Soares.
Dona Eduíge, 86, por exemplo, que interpretou a beata com a pedra na cabeça, subindo o morro, também não está nada contente com a realidade de Monte Santo.
``Quando chegaram os artistas do filme aqui, mandaram me chamar. `Pra que é?', eu perguntei. Disseram que eram do Rio de Janeiro. E eu disse: `Dom Pedro 2º mandou dizer que o Monte Santo era o maior do Brasil e até hoje não vejo vantagem. Sou aposentada. Mas meu dinheiro tem vezes que mal dá para o pão e os remédios. É uma cegueira de remédio para ver se melhora", diz.

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