São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
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Caso paulista

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

A intervenção do Arte Cidade introduziu no velho centro uma dimensão lúdica cujos efeitos talvez sejam mais notáveis na alteração do ritmo daqueles que por ali habitualmente circulam, gente em geral alheia ao consumo de arte
Marcos Augsto Gonçalves
Um dos méritos da segunda versão do projeto Arte Cidade, que pode ser visitado até o dia 23, em São Paulo, é chamar a atenção para o antigo centro da maior metrópole brasileira. Centro que guarda muito de sua imponência, mas que produz no visitante uma estranha sensação de descentramento. Caminhar por suas ruas e contemplar seus velhos e belos edifícios é passear por uma São Paulo que não mais coincide com si mesma. É visitar um significante urbano cujos significados se deslocaram: o Anhangabaú, o Martinelli, a rua da Quitanda deixaram de simbolizar a vida elétrica da cidade –passaram a signos de um passado pujante e de um presente de decadência e abandono.
A intervenção proposta pelo Arte Cidade, com toda sua inclinação para o efêmero (a obra, no caso, é o projeto), introduziu no velho centro um novo ruído, uma dimensão lúdica, cujos efeitos talvez sejam mais notáveis na alteração do ritmo e do fluxo daqueles que por ali habitualmente circulam –gente em geral alheia ao consumo de arte– do que entre os visitantes afeitos ao circuito de museus e galerias. São os transeuntes que param, divertidos e espantados, diante do periscópio construído por Guto Lacaz, os que se inquietam com os holofotes de Rubens Mano ou os que trocam os mais insólitos objetos por uma imagem registrada pelo fotógrafo Fujocka.
Nada, porém, se compara ao movimento que o projeto gerou junto à legião de crianças de rua que habita o antigo down town paulistano. Crianças que se abrigam em construções abandonadas das primeiras décadas do século, que se enfiam entre portais, banham-se nos espelhos d'água e cheiram cola nas calçadas.
A primeira reação diante da novidade foi uma mistura de satisfação e agressividade. Satisfação pelos ``brinquedos" que chegavam; agressividade pela percepção de que aquilo que invadia o território não se destinava diretamente a eles.
Um caso interessante ocorreu com o trabalho de Tadeu Knudsen. É um painel de tecido, suspenso por balões, que faz o papel de tela, numa espécie de teatro de sombras: uma luz, quando interceptada, projeta silhuetas agigantadas no pano flutuante.
No início, as crianças observaram a coisa e algumas participaram do jogo. Mas logo depois da inauguração, decidiram ir além: tentaram se apoderar de um dos balões –o que fizeram, destruindo toda a montagem. Por pouco não se instala uma pequena guerra contra os meninos.
Mas a decisão acabou sendo outra: foram reunidos e receberam do artista e dos organizadores uma explicação: aquilo era um ``brinquedo" para todos, para eles, inclusive, usarem. Solicitou-se que zelassem pela manutenção do trabalho. E foi o que fizeram. A tela de Tadeu, que por pouco não foi alijada do projeto, acabou sendo refeita e sobre ela os visitantes podem ver à noite silhuetas de meninos dançando e brincando.

Ilustração: ``São Paulo (135831)", 1924, óleo de Tarsila do Amaral

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