São Paulo, segunda-feira, 17 de outubro de 1994
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Dardos e flechas

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Continuo preocupado com o baixo astral que o Rio atravessa. Uma criança nasceu na pia do hospital Souza Aguiar –o maior pronto-socorro da cidade. Um ex-ferroviário morreu no corredor, sem tempo de ser atendido. Essas coisas sempre aconteceram, no Rio, nas Ilhas Papuas, em qualquer lugar e tempo.
São eventos que merecem manchetes dos jornais. Na TV, os locutores ficam tão horrorizados que parecem asmáticos. Compreendo: é a justa indignação por tais descalabros. Mas há pior. Como dizia o Nelson Rodrigues, há pior.
Durante um espetáculo no Teatro Municipal, um maestro e um músico trocaram desaforos e foram às vias de fato. Além dos palavrões, houve socos em meio à açucarada partitura de Mingus para o ``Dom Quixote".
Pior situação só mesmo a da família real da Inglaterra. Um banal adultério entre dois jovens de 30 anos resulta num escândalo e num ``beste seller". Um cidadão que muda de roupa em seu quarto é fotografado e sua foto vai para a primeira página dos jornais e capas de revista. Enquanto isso, a rainha-mãe toma gim e veste-se de amarelo-canário. Na minha infância havia um ditado que parece ter sido arquivado: quem foi rei nunca perde a majestade.
E há mais: um príncipe, que não era inglês e muito menos malandro carioca, num castelo sombrio da Dinamarca, queixou-se num monólogo repetido pelos palcos do mundo inteiro: ``The alings and arrows of outrageous fortune". A sorte ultrajante, da qual Hamlet reclamava, era apenas um caso pessoal, nada que possa ser comparada às desditas da cidade que tem como padroeiro um santo crivado de flechas.
Acredito que, ao invés de ser sintoma de decadência, os dardos e flechas das ``outrageous fortunes" são sinais de cruel maturidade. Se uma criança nascer numa pia de hospital em Pirapora ou em Exu, dificilmente será notícia, muito menos manchete na TV e nos jornais.
O Rio perdeu a inocência: ficou humano –e por isso paga os ``thousand natural shocks" –desculpem, andei lendo Shakespeare no fim de semana.

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