São Paulo, sexta-feira, 21 de outubro de 1994 |
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Torres-García harmoniza rigor e fantasia
MARCELO COELHO
Destaco algumas obras –mesmo porque fazer uma avaliação completa da Bienal seria muito difícil. Os trabalhos do artista pop Robert Rauschenberg não me interessaram muito. Até o momento em que vi... um ventilador, um mero ventilador antiquado, de mesa, meio amassado. O artista grudou nesse ventilador uma asa de metal azul –e obteve uma transfiguração, construiu um objeto belíssimo, digno de figurar como um dos símbolos da arte moderna. Vale também olhar a pilha de livros montada pelo eslovaco Matej Kren –há uma linda surpresa ali. Gostei também das telas vastas e intensas de Niura Belavinha e de Marianita Luzatti: prazeres puramente sensoriais, panoramas de tinta. Iberê Camargo, muito bem escolhido. E a extrema violência das telas de Adriana Varejão: pinturas como que autopsiadas, pingando sangue, intumescidas, esfoladas, brutais. Mas o que realmente justifica uma ida à Bienal é a retrospectiva do uruguaio Joaquín Torres-García. O Brasil tem um débito com esse pintor: há uns dez anos boa parte de sua obra foi destruída num incêndio no MAM do Rio. Torres-García é um artista extraordinário. Ensina muitas coisas: primeira lição, a de que o rigor construtivo não precisa ser sinônimo de frieza. Segunda, a de que a fixação no mundo infantil não exige infantilidade por parte do artista. Terceira, a de que o ``decorativo" não se opõe ao ``artístico". Quarta, a de que alguém pode ``evoluir", modificar a própria obra e continuar fiel a si mesmo, sem recorrer à auto-imitação. Coerência, gosto, beleza: termos demasiado vagos. Este palavrório elogioso não adianta muito. Tento descrever um ou outro quadro de Torres-García. A tela é compartimentada em quadradinhos desiguais, bem delimitados em linhas pretas. Dentro de cada ``box", de cada caixinha desenhada entram desenhos simples, emblemas precisos: uma âncora, um relógio, um peixe, um homem, uma mulher. Tudo é ao mesmo tempo simétrico e fantasioso. Planificados na superfície da tela, imersos num jogo de cores denso e vibrante, esses ``emblemas" –âncora, peixe, relógio– surgem quase que como hieróglifos, como palavras. Torres-García faz o espectador ficar hesitando entre duas atitudes: seus quadros são para ``ver" e também para ``ler". Sentimos a mistura entre uma escrita hieroglífica, facilmente reconhecível, esquemática, infantil, para ser ``lida", e um quadro organizado, feito de ritmos, simetrias e cores, para ser ``visto". Seria, talvez, uma síntese especialmente feliz entre Klee e Mondrian. Do primeiro, Torres-García obteve o ``desajeitamento" ingênuo, as simbologias infantis, o ``conteúdo" primitivo de um relógio que é apenas um círculo com dois mostradores, de um peixe que qualquer criança sabe desenhar. De Mondrian, a organização disso tudo num espaço geométrico, liso, equilibrado. O efeito é sensacional. Sempre desconfiei um pouco de Mondrian: sua extrema depuração, sua ascese enquanto pintor foram um ganho para a arte do século 20. Mas, o que se ganha de um lado, perde-se do outro: perspectiva, textura, profundidade, atmosfera –coisas que a arte da pintura costuma procurar– desaparecem. Torres-García tentou, a meu ver, uma compensação para essas ``perdas" de Mondrian, sem esquecer os ``ganhos" de toda a ascese, de todo o rigor. Quando Torres-García dispõe geometricamente os seus ``símbolos" na tela, seus relógios rudimentares, seus peixes de criança, ele cria, digamos assim, uma perspectiva própria. Aqueles desenhos, aqueles sinais infantis, organizados na tela plana, escondem uma ``profundidade", uma tridimensionalidade que não é mais visual, não mais recorre a texturas, sombras e pontos de fuga, mas vive neste outro espaço, nestas outras profundezas, que são as da memória, do passado, do arcaico. Os quadros de Torres-García me fazem lembrar os brinquedos de bloquinhos que se chamavam ``O Pequeno Construtor". Havia, na caixa de papelão, paredezinhas de tijolo, torres de igreja, aquedutos breves de madeira. A gente ficava a fazer cidades e edifícios, sentia entre os dedos a solidez dos cubos de brinquedo. Tijolinhos. E é assim que Torres-García evoca a infância, usa significados elementares, dá profundidade existencial a seus quadros planos e duros. Seu tema talvez seja, no fundo, a viagem: âncoras, peixes, portos. E há na Bienal um quadro maravilhoso de Torres-García, chamado ``Porto Metafísico", onde navios e hotéis, tendas de loja, furgões, guindastes, edifícios e mares se preparam, numa disciplina de cor e forma, para lançar-se ao largo, para jogar-se ao infinito. Torres-García desenha mistérios com clareza; é um poeta e um grande pintor. Texto Anterior: Éramos Gays e o Silvio Santos não sabia! Próximo Texto: Glenn Gould ganha cinebiobrafia à sua altura Índice |
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