São Paulo, sexta-feira, 21 de outubro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Torres-García harmoniza rigor e fantasia

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

S enti um grande tédio ao visitar a Bienal. Mesmo a Disneylândia das instalações tinha sido mais divertida em 92. Não que eu tenha ido à mostra procurando apenas divertimento; eu estava procurando, não digo ``arte", que é uma palavra complicada demais, mas pelo menos surpresa, encantamento, prazer.
Destaco algumas obras –mesmo porque fazer uma avaliação completa da Bienal seria muito difícil.
Os trabalhos do artista pop Robert Rauschenberg não me interessaram muito. Até o momento em que vi... um ventilador, um mero ventilador antiquado, de mesa, meio amassado. O artista grudou nesse ventilador uma asa de metal azul –e obteve uma transfiguração, construiu um objeto belíssimo, digno de figurar como um dos símbolos da arte moderna.
Vale também olhar a pilha de livros montada pelo eslovaco Matej Kren –há uma linda surpresa ali. Gostei também das telas vastas e intensas de Niura Belavinha e de Marianita Luzatti: prazeres puramente sensoriais, panoramas de tinta. Iberê Camargo, muito bem escolhido. E a extrema violência das telas de Adriana Varejão: pinturas como que autopsiadas, pingando sangue, intumescidas, esfoladas, brutais.
Mas o que realmente justifica uma ida à Bienal é a retrospectiva do uruguaio Joaquín Torres-García. O Brasil tem um débito com esse pintor: há uns dez anos boa parte de sua obra foi destruída num incêndio no MAM do Rio.
Torres-García é um artista extraordinário. Ensina muitas coisas: primeira lição, a de que o rigor construtivo não precisa ser sinônimo de frieza. Segunda, a de que a fixação no mundo infantil não exige infantilidade por parte do artista. Terceira, a de que o ``decorativo" não se opõe ao ``artístico". Quarta, a de que alguém pode ``evoluir", modificar a própria obra e continuar fiel a si mesmo, sem recorrer à auto-imitação.
Coerência, gosto, beleza: termos demasiado vagos. Este palavrório elogioso não adianta muito. Tento descrever um ou outro quadro de Torres-García.
A tela é compartimentada em quadradinhos desiguais, bem delimitados em linhas pretas. Dentro de cada ``box", de cada caixinha desenhada entram desenhos simples, emblemas precisos: uma âncora, um relógio, um peixe, um homem, uma mulher.
Tudo é ao mesmo tempo simétrico e fantasioso. Planificados na superfície da tela, imersos num jogo de cores denso e vibrante, esses ``emblemas" –âncora, peixe, relógio– surgem quase que como hieróglifos, como palavras. Torres-García faz o espectador ficar hesitando entre duas atitudes: seus quadros são para ``ver" e também para ``ler".
Sentimos a mistura entre uma escrita hieroglífica, facilmente reconhecível, esquemática, infantil, para ser ``lida", e um quadro organizado, feito de ritmos, simetrias e cores, para ser ``visto".
Seria, talvez, uma síntese especialmente feliz entre Klee e Mondrian. Do primeiro, Torres-García obteve o ``desajeitamento" ingênuo, as simbologias infantis, o ``conteúdo" primitivo de um relógio que é apenas um círculo com dois mostradores, de um peixe que qualquer criança sabe desenhar. De Mondrian, a organização disso tudo num espaço geométrico, liso, equilibrado.
O efeito é sensacional. Sempre desconfiei um pouco de Mondrian: sua extrema depuração, sua ascese enquanto pintor foram um ganho para a arte do século 20. Mas, o que se ganha de um lado, perde-se do outro: perspectiva, textura, profundidade, atmosfera –coisas que a arte da pintura costuma procurar– desaparecem.
Torres-García tentou, a meu ver, uma compensação para essas ``perdas" de Mondrian, sem esquecer os ``ganhos" de toda a ascese, de todo o rigor. Quando Torres-García dispõe geometricamente os seus ``símbolos" na tela, seus relógios rudimentares, seus peixes de criança, ele cria, digamos assim, uma perspectiva própria.
Aqueles desenhos, aqueles sinais infantis, organizados na tela plana, escondem uma ``profundidade", uma tridimensionalidade que não é mais visual, não mais recorre a texturas, sombras e pontos de fuga, mas vive neste outro espaço, nestas outras profundezas, que são as da memória, do passado, do arcaico.
Os quadros de Torres-García me fazem lembrar os brinquedos de bloquinhos que se chamavam ``O Pequeno Construtor". Havia, na caixa de papelão, paredezinhas de tijolo, torres de igreja, aquedutos breves de madeira. A gente ficava a fazer cidades e edifícios, sentia entre os dedos a solidez dos cubos de brinquedo. Tijolinhos.
E é assim que Torres-García evoca a infância, usa significados elementares, dá profundidade existencial a seus quadros planos e duros.
Seu tema talvez seja, no fundo, a viagem: âncoras, peixes, portos. E há na Bienal um quadro maravilhoso de Torres-García, chamado ``Porto Metafísico", onde navios e hotéis, tendas de loja, furgões, guindastes, edifícios e mares se preparam, numa disciplina de cor e forma, para lançar-se ao largo, para jogar-se ao infinito. Torres-García desenha mistérios com clareza; é um poeta e um grande pintor.

Texto Anterior: Éramos Gays e o Silvio Santos não sabia!
Próximo Texto: Glenn Gould ganha cinebiobrafia à sua altura
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.