São Paulo, sexta-feira, 21 de outubro de 1994
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Os índios do Jaguaribe, os tremembé e os tapeba

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

Os índios do Jaguaribe passaram pelo processo que o cientista político homônimo afirma ser uma lei inelutável da história. E como os outros índios do Ceará, fornecem um desmentido à sua afirmação.
Em todos esses casos, não foi a marcha inelutável do progresso quem venceu os índios. Foi a mesquinha e gananciosa política de conquista. As etapas não foram abstratas com a seleção natural favorecendo a civilização ocidental.
Esse esquema universal invocado por Hélio Jaguaribe (posteriormente secundado por Claudio W. Abramo) é na realidade uma pseudo-história, associada a dois antropólogos materialistas norte-americanos: Morgan e mais recentemente Leslie White.
Foi construída inicialmente pela antropologia da Inglaterra vitoriana e justificou, com a aparência da ciência, a expansão imperialista que se estabeleceu no globo a partir de 1870. O chamado progresso fundamentou o uso da força para invadir povos e destruir civilizações.
Na verdade, a história real –ao contrário do esquema universal– é feita de caminhos especiais, de processos paralelos e divergentes.
Dos índios do Ceará, a história é a seguinte: atacados no final do século 17 pelos mercenários paulistas por estarem resistindo à ocupação de suas terras, eles acabam procurando refúgio nos aldeamentos. É a célebre ``Guerra dos Bárbaros" que agitou grande parte do Nordeste. ``Ajustada a paz com a nação do gentio Payacu", reza uma carta de 1696, povoa-se a ribeira do Jaguaribe.
Isto porque os aldeamentos eram formas de se reduzirem os territórios tradicionais: a cada um desses aldeamentos, verdadeiros campos de refugiados, davam-se terras, em geral uma légua em quadra. Isso feito, povoava-se a região que se acabara de ``desinfestar" (os termos são literais) e impunha-se o trabalho compulsório aos índios.
Querendo apoio real para destruir aos índios rebeldes do Jaguaribe, a Câmara de Aquirás em 1704, escrevia ao rei de Portugal nestes termos: ``Missões com estes bárbaros são escusadas, porque de humano só têm a forma, e quem disser outra coisa é engano conhecido". São ecos do Jaguaribe e cada época tem sua linguagem.
Os tremembé e os tapeba do Ceará passaram por experiências semelhantes. Celebrada a paz com os tremembé, foram aldeados em Almofala e receberam uma légua em quadra de terra. Os tapeba, nome que recobre um conjunto de remanescentes de grupos liquidados, foram aldeados em Caucaia, que ficou a cargo dos jesuítas.
Em 1759, as aldeias passaram a Vilas e teve início uma política de assimilação cultural e de miscigenação preconizada pelo Marquês de Pombal. E um século mais tarde, o Ceará inaugurou uma política de grande sucesso: a de declarar os índios extintos, ao arrepio de todos os fatos, e liberar assim suas terras.
Hoje, depois de 300 anos de derrotas, os índios tremembé e tapeba ainda existem e ainda resistem nos mesmos locais em que foram aldeados no final do século 17.
As suas terras, já tão diminutas, estão invadidas. Seus invasores, alguns muito poderosos, tentam por todos os meios impedir a demarcação das terras dos índios, como manda a Constituição. Alegam tese que, como Dalmo Dallari já provou, não se sustenta, que não se podem demarcar terras que estão em litígio judicial.
A decisão é agora política, e a palavra está com o governo federal. São decisões como esta, e não a marcha da evolução humana, que traçam o destino das populações indígenas.

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