São Paulo, segunda-feira, 24 de outubro de 1994
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Antropólogo critica 'não-governo' do Rio

LUIZ CAVERSAN ; MAURICIO STYCER

Folha - O procurador-eleitoral do Rio, Alcyr Molina, disse que a fraude nas eleições do Rio é apenas uma ramificação do crime organizado. O que sr. acha?
Rubem César Fernandes - Evito a expressão ``crime organizado". Não é tão organizado assim. Crime organizado sugere uma grande estrutura, um comando, disciplina. É uma coisa que não existe no Rio. Existem regiões organizadas. O jogo do bicho, por exemplo, é claramente organizado.
Folha - Qual é a relação entre o bicho e o tráfico de drogas?
Fernandes - Falta uma investigação mais sofisticada sobre isso.
Folha - E qual é o poder real do Comando Vermelho?
Fernandes - Comando Vermelho é uma sigla, um nome, um emblema. Não é uma estrutura de comando, realmente. É uma sigla que serve para mapear lealdades, simpatias, relações, grupos.
Folha - Quem são os líderes desses grupos?
Fernandes - São tiranos, mais ou menos violentos, que tentam impor leis locais às comunidades onde vivem. Eles vivem numa situação muito instável, sempre guerreando para defender os seus pontos de venda de drogas da cobiça de outros pequenos tiranos.
Folha - Como enfrentá-los?
Fernandes - Entrar na favela e enfrentar um grupo desses é mole. O problema é entrar e ficar. Semana passada, a polícia entrou na favela Nova Brasília e matou 13 pessoas. Nenhum policial morreu.
Folha - O que sr. chama de ``entrar e ficar"?
Fernandes - É o poder público se inserir naquele espaço. Hoje o poder público chega na favela como invasor em território estrangeiro. Eles chegam com medo, atirando a esmo, do alto, de helicóptero, como se estivessem no Vietnã.
Folha - O sr. defende a ação do Exército nas ruas do Rio?
Fernandes - Não. Achar que o Exército vai resolver os problemas do Rio é uma ilusão criada pela Eco-92. O Exército tem horror a fazer papel de polícia.
Folha - O sr. acha que o Exército estaria disposto a participar de algum tipo de ação?
Fernandes - Qualquer proposta que exacerbe o desentendimento político entre as elites políticas e a ciumeira corporativa (Exército, PM e Polícia Civil) está fadada a aumentar a confusão. O que existe é um desafio de cooperação.
Folha - O sr. acha viável uma ação desse tipo?
Fernandes - Em agosto, quando fomos recebidos pelo presidente Itamar Franco, estivemos perto de dar essa virada. Fizemos aquela viagem depois de conversar longamente com o governo do Estado.
Folha - O que deu errado?
Fernandes - O governador do Rio, Nilo Batista, não quis sentar na cadeira, não quis assumir a coordenação da discussão. Sem ele, fica uma invasão branca, inviável em ano eleitoral.
Folha - Qual seria a importância dessa ação conjunta do governo federal e estadual?
Fernandes - Sentar-se à mesa implicaria reconhecer que caberia às Forças Armadas abandonar a sua rotina –e as suas pretensões de tutoras políticas sobre o Estado– e pensar sobre um problema que é do domínio delas, que é o problema das fronteiras.
Folha - Para fazer o quê?
Fernandes - Evitar o contrabando de armas e drogas. O Rio ainda não fabrica fuzis AR-15 nem produz cocaína. É contrabando.
Folha - Essa ação integrada ficou, então, para o ano que vem?
Fernandes - Estivemos com Fernando Henrique na véspera da eleição. Ele concordou em participar, após o segundo turno, de um encontro amplo para debater os problemas do Rio.
Folha - O sr. não acha que a elite política carioca, por uma tradição cultural e histórica, é uma elite com uma visão dos problemas muito mais nacional do que regional?
Fernandes - De fato, é impressionante perceber o quão pouco a elite carioca conhece o Rio de Janeiro, as dificuldades econômicas, a situação demográfica. Há toda uma dinâmica da vida da cidade que não é objeto de discussão.
Folha - É esse o espaço que o Viva Rio tenta ocupar?
Fernandes - Esse é um caminho de se pensar a coisa pública. Ao invés de pensá-la numa escala global, se voltar para a resolução de problemas que têm enraizamento local. Essa dimensão municipal cresce como espaço relevante de se pensar a política.
Folha - A morte de 13 pessoas na favela Nova Brasília não desanima o Viva Rio?
Fernandes - Estamos vivendo um momento muito crítico, muito perigoso. É como se esse interregno entre o velho e o novo governo fosse um período de não-governo. A gente pode ter outros episódios do tipo acontecendo.
Folha - E o governo?
Fernandes - A gente percebe que o governo não tem condições de controlar. O governador e o secretário de Polícia claramente não tinham nenhum controle do que estava se passando na favela. Foi uma ação autônoma de grupos policiais que se sentem livres para agir –e agir à sua maneira.
Folha - A vinda do ministro da Justiça ao Rio pode ajudar?
Fernandes - Sim, desde que ele venha se encontrar com o governador. Se, ao contrário, ele vem e se reúne apenas com os militares, sem a presença do governador, isso só vai criar mais tensão e mais corporativismo.
Folha - Qual a sua opinião sobre a anulação das eleições?
Fernandes - É sintoma, por um lado, dessa perda de controle da vida pública. Por outro lado, a denúncia da fraude mostra uma reação a esse estado de coisas.
Folha - O sr. já foi assaltado?
Fernandes - Fui assaltado em Nova York. No Rio, nunca.

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