São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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A precária fundação monetária do Real

ÁLVARO ANTÔNIO ZINI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

O noticiário das últimas semanas não deixa dúvidas: a inflação está novamente em alta. Prevê-se de 2% a 3% para outubro, 3% a 4% para novembro, 5% a 6% para dezembro.
É uma frustração ver esses números outra vez. Mas o que mais deveria chatear é que isso era absolutamente previsível e foi apontado em artigo publicado por mim e Jeffrey Sachs nesta Folha, em 26 de junho passado.
Infelizmente, no Brasil, grande parte dos economistas ``papeleiros" (usando a expressão do deputado Delfim Netto) se desfez em uma unanimidade de elogios fáceis ao Plano Real.
Comentários críticos? Nem pensar, porque isso poderia sugerir apoio ao PT. Teve até um reputado economista monetarista de São Paulo dizendo que o Plano Real tinha uma ``âncora monetária". Onde? Isso é que é ``wishful thinking".
Mas o elogio fácil cega. Não deixa ver os problemas que estão minando as bases de um processo e não permite aproveitar os avisos que os críticos vêm fazendo. Aí se espera até que o problema esteja grande e parte-se para a escolha de alguma desculpa espiatória.
A volta da inflação é perigosa, não porque os números já estejam altos, mas porque as bases monetárias do Plano Real são precárias e suas bases fiscais não são também uma maravilha.
As medidas tomadas para encarecer o crédito terão pouco efeito sobre os preços, pois, mais uma vez, não se dá conta da instabilidade do atual regime monetário.
O verdadeiro problema do Real está na impossibilidade de controlar a oferta de moeda, decorrente tanto da existência da moeda indexada quanto da entrada de moeda via conta de capital (atraída pelo diferencial entre a taxa de juros interna e a externa).
Para se resolver o impasse é preciso deixar para trás a invenção da indexação da moeda e baixar o juro doméstico, buscando nivelá-lo com a taxa de juros externa.
Medidas de restrição à entrada de capitais, quando o diferencial de juros é grande, apenas levam à busca de oportunidades de arbitragem e a outras peripécias que maquiam um tipo de aplicação em outro.
Há uma enorme literatura internacional a esse respeito e a conclusão é uma só: nos momentos em que há folga na liquidez internacional, tentar manter um diferencial positivo de juros é uma opção sem eficácia.
Com a taxa de juros elevada e com medidas de contenção ao crédito pretende-se estar fazendo política monetária. No entanto, a moeda mais importante no país, a moeda indexada, segue crescendo, acompanhando a elevação dos juros. E o grupo que recebe essa renda expande seu consumo. Afinal, quem é que compra carros zero ou importados?
Não é só o regime monetário que apresenta fragilidade. Também o lado fiscal não está muito sólido. Para ver isso, o leitor deve consultar a tabela que acompanha este artigo, com os números da execução financeira do Tesouro.
Segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional, o total de receitas da União cresceu 16,9% em termos reais em 1993 e outros 24,9% em 1994 (de janeiro a setembro). Com as receitas crescendo 46% acima da inflação, você poderia pensar: o governo federal resolveu seu problema de falta de recursos.
Contudo, isso não é assim. As despesas cresceram mais rápido que as receitas. Essa é uma constatação frequente no Brasil: tão logo a receita sobe, criam-se novas despesas.
Ressalto para o leitor que os dados não são uma ``fabricação" de algum economista renegado, mas sim registros oficiais da Secretaria do Tesouro Nacional.
Alguns itens são espantosos: crescimento real das despesas com o funcionalismo de 25,3% em 1993, mais 44,5% em 1994. Aumento dos gastos com custeio e investimentos de 91,7% em 1993, mais 48,5% em 1994.
O aumento do custo real da dívida pública, resultado dos anos em que os economistas da PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro estão no governo, nem é preciso apontar.
Assim, o heróico esforço de corte nos gastos da ex-ministra Zélia e equipe foi dissipado. Note que o aumento dos dispêndios deu-se neste ano, sem que a República dispusesse de Orçamento aprovado, mostrando que este tipo de expediente também não foi muito eficaz.
A conclusão a tirar é que o esforço fiscal que normalmente se deve fazer em um plano de combate à inflação está muito aquém do desejável. Limitou-se a aumentar a arrecadação e a contrair as transferências federais para Estados e municípios.
Como essa contração não pode continuar em 1995, temos já um problema. E a arrecadação tampouco vai continuar crescendo no mesmo diapasão.
Alternativas existem, mas exigiriam disposição e outro diagnóstico por parte da equipe econômica.
Para salvar o Real, o governo necessita tanto reformar o regime monetário, abolindo a moeda indexada (o que envolve renegociar a dívida pública), quanto fazer um esforço fiscal mais consistente, reduzindo para valer as despesas.
Fora isso, a âncora cambial que hoje segura o Real logo terá que ser abandonada. E o enorme montante de reservas sentado nas contas do Banco Central vai se mostrar inútil para parar o processo.
Mas, antes disso, vamos ter uma sequência de desculpas de ocasião, apontando os salários, o aumento de consumo, a seca, o Natal etc. como responsáveis pela volta da inflação.
O leitor já viu esse filme antes!

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