São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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Pesquisa legitima cortes de subsídios

HENRY LOUIS GATES JR.
ESPECIAL PARA "THE NEW REPUBLIC"

Em 1854, Frederick Douglass escreveu: "O orgulho e o egoísmo, somados ao poder mental, nunca carecem de uma teoria que os justifique. Os males mais fomentados pela escravidão e opressão são precisamente aqueles que os escravocratas e opressores procuram transferir de seu sistema ao caráter inerente de suas vítimas. Ao fazerem do escravizado um personagem digno apenas de ser escravo, eles se desculpam por recusar-se a fazer do escravo um homem livre".
O trabalho de Murray e Herrnstein, sobre as causas supostamente naturais ou genéticas da discrepância entre norte-americanos negros e brancos me parecem refletir os temores de Frederick Douglass.
Muitos de nós nos lembramos de conclusões semelhantes defendidas por Arthur J. Jensen e William Shockley no final dos anos 60 e início dos 70. Eu me recordo de uma palestra brilhante feita por meu professor de biologia na Universidade Yale, Arthur Galston, sobre a recusa obstinada de Jensen em levar em conta as complexas inter-relações entre meio ambiente e fatores genéticos.
Em nosso debate discutimos as implicações do trabalho de Jensen em termos de políticas governamentais, numa administração Nixon-Agnew profundamente comprometida em derrubar os programas de educação compensatória.
Qual a novidade, então, desta vez? A novidade é que a tese de Murray e Herrnstein é introduzida nas discussões sobre políticas públicas quase um quarto de século depois de ouvirmos a réplica de Galston –um quarto de século que testemunhou o surgimento da maior classe média negra na história, além da maior subclasse negra. Exatamente por causa dos programas governamentais que visavam aliviar as causas fundamentais da pobreza, a classe média negra quadruplicou entre 1967 e hoje.Ao mesmo tempo, porém, quase 45% de todas as crianças negras nos EUA vivem na linha de pobreza ou abaixo dela. Assim como o abismo entre as comunidades compostas, brancas e negras, se ampliou, também se ampliou o abismo no interior da própria comunidade negra.
Assim, não chega a surpreender que a tese de Murray e Herrnstein surja neste momento de nossa história. Se as diferenças de inteligência, e portanto de conquistas, são naturais –genéticas–, ou seja, determinadas por Deus, então por que dar-se ao trabalho de combatê-las?
Me parece que nisso consiste o aspecto mais pernicioso do desprezo com que Murray e Herrnstein tratam o papel do meio ambiente no desempenho de negros em testes padronizados: a afirmação de que o abismo entre classe média negra e pobres negros reflete as variações naturais no interior de um grupo, e não acontece em função dos cortes nos próprios programas federais que ajudaram a criar a nova classe média negra. Como poderia haver dito Frederick Douglass, "os crimes da discriminação se transformaram na melhor defesa da própria discriminação".

Tradução de CLARA ALLAIN

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