São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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Folha - Com Delfim?

LUIS NASSIF

Campos - É, com o Delfim. Como o Imposto Único Sobre Combustível era repartido com os Estados –tinham 40% e depois passaram a 60%–, então ele começou a se apegar ao PIS, PASEP, Finsocial –impostos não repartidos, quando a idéia original era de impostos repartidos. Do Imposto de Renda e Imposto de Consumo, 10% iam para os municípios, formando um fundo de 20%, que era o fundo de participação. Da Receita Federal, venda e consumo, 20% iam para os Estados.
Em 1969, ele reduziu para 10% –cinco e cinco–, ficando o restante à disposição do governo para aprovação de projetos individuais, que foi a fonte de poder do Vellosinho (João Paulo dos Reis Velloso, ex-ministro do Planejamento). Ele cortou 10%. Como os Estados reclamaram muito, o que é que ele fez? Autorizou os Estados a se endividar no exterior. Foi o começo do processo do endividamento. Ele transferiu para o exterior o ônus de compensar os Estados pela redução da participação.
Muita coisa se perdeu na implementação das idéias do governo Castello. O BNH se destruiu, o FGTS se destruiu, uma porção de coisa. No Brasil a implementação é destrutiva.
Folha - Em relação à questão dos incentivos fiscais, também houve um grande exagero nos anos 70, com muito desperdício.
Campos - O grande erro –isso foi na época do Simonsen– foram os incentivos fiscais do Nordeste. O sistema estava operando mal, o Simonsen tinha toda razão. Então havia duas opções. Uma era você procurar melhorar a aplicação de incentivos, mas num sistema privado. A outra era você criar os fundos de investimentos, como o Finor (Fundo de Investimento do Nordeste), o Finam (Fundo de Investimento da Amazônia).
Eu argumentei com o Simonsen que o meio melhor seria você equilibrar a instrumentação do artigo 157. Você entregava dinheiro aos bancos para compra de ações. Mas os bancos seriam obrigados a criar fundos e aplicar nele seus recursos e os recursos dos clientes. Eu propus que os bancos criassem fundos de aplicações, com seus próprios recursos e de seus clientes.
Por que isso era bom? Primeiro, porque os bancos ficavam comprometidos com os projetos. Se o banco escolhesse um mau projeto, os fundos dele entravam pelo cano. Quando você manda para a Finor, aí você tem toda pressão política desabando em cima daquele fundo. Foi a grande fonte de perversão.
Folha - O sr. é um crítico da era Geisel e um admirador do seu principal ministro, Mario Henrique Simonsen. Como é que fica?
Campos - O Simonsen tem um problema. Sua inteligência é próxima da genialidade, mas ele não é muito operacional e nem um lutador de causas perdidas, como eu. Geisel o respeitava muito e ele desenvolveu uma afeição filial pelo Geisel. O Geisel era o pai que ele perdera e ele, o filho que o Geisel perdera. Ele era um sujeito que precisava de um pai e o Geisel foi assim a figura paternal para ele. Agora, o Geisel tinha mais de um filho, o Vellosinho, que era um homem que queria poder, intervencionista e tudo.
Fui eu que trouxe o Vellosinho para o Brasil e me arrependo. Eu trouxe para a tal pesquisa para o Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas). Chamei para dirigir o Ipea, mas nunca imaginei transformá-lo num executivo. Ele se transformou num executivo e foi ministro nove anos, e atrapalhou enormemente a vida do Simonsen, porque o Simonsen fazia postura ``contracionista" e ele fazia a figura mais agradável do expansionista e o Geisel ficava assim: ora dava razão ao Simonsen, ora ao Vellosinho. O Simonsen não era homem para brigar.
Folha - O senhor é otimista em relação ao Brasil?
Campos - Eu acho que perdeu-se tanto tempo em descaminhos, que nós temos ainda um decênio de mediocridade confortável. O que nós perdemos, por exemplo? Você teve a política de informática: foram cinco anos errados. Isso foi um desastre e o negócio veio no pior momento. Quando é que foi votada a lei de informática? 1984. Quando é que surgiu o computador pessoal? Foi no meio de l984. Quando é que houve o grande deslanche asiático? Em 1984.
O Brasil deixou de ser uma opção de investimento, exatamente no momento em que a tecnologia dava um salto de tecnologia de elite para tecnologia de ``marketing" e no momento em que os dois maiores credores, exportadores de capital, eram os dois países amigos e tradicionais do Brasil.
Nesse momento, outubro de 1984, cortamos japoneses e alemães. Para instalar um microprocessador, tinha que pedir licença. Não há país que suporte isso. O Brasil podia estar hoje na posição da Coréia ou do Sudeste da China. Por que essa besteira, essa acumulação de coisas, política de informática, Plano Cruzado, meu Deus do céu? Quantos anos! Até hoje você ainda tem defeitos estruturais na produção por causa do Plano Cruzado. Depois, você teve moratória. Você jamais devia ter programado moratória, devia ter feito um pagamento simbólico aos bancos, Cr$ 10 milhões, uma migalha, mas sempre manter o pagamento. Primeiro, porque isso revelaria a consciência ética do brasileiro de não recusar a dívida. Isso é muito importante. Um japonês me dizia: ``Roberto, o problema do Brasil não é não poder pagar. Isso nós já atravessamos no Japão. O problema é que o Brasil não quer pagar. Isso é outra coisa". O Funaro nunca entendeu isso. Passou a ser sinal de masculinidade você não pagar.
Folha - Nos anos 50, parecia até que o sr. gostava da impopularidade, de enfrentar vaias. Foi a formação de seminarista que o tornou meio masoquista?
Campos - É porque eu não aceitei esses mitos, não é?
Folha - Não o desanimava a impossibilidade de obter resultados imediatos?
Campos - Não. Eu achava que o Brasil podia montar um projeto racional de desenvolvimento, através não de um trabalho de persuasão popular, mas através de uma tecnocracia esclarecida. Por isso é que eu fui um grande treinador, uma agência de treinamento. Eu achava que tinha que fazer a coisa a partir do esclarecimento, da liderança, para depois você conseguir estender, fazer com que as massas assumissem um grau de racionalidade suficiente para você organizar a modernização.
Folha - Como o sr. conviveu esses anos todos com a impopularidade, ter sido chamado de entreguista. Era muito pesado?
Campos - Ah! sim, foi psicologicamente muito penoso não é? Mas eu achava que teria razão para fazer uma aposta de longo prazo. Estava fazendo uma aposta de longo prazo.
Folha - Quando é que o sr. começou a sentir que estava começando a ganhar a aposta?
Campos - Foi com o advento de Gorbatchov. A perestroika do Gorbatchov foi a minha fase de reabilitação. Eu fiquei muito isolado no Senado durante muitos anos. Todo projeto que eu apresentava, sempre era olhado com a maior suspeita. Eu só me reabilitei com o resultado da transformação mundial, que começou na era Gorbatchov e culminou com o muro de Berlim, não é?
Folha - Essa pecha de impatriota, que colocaram no sr. de algum modo o afetava?
Campos - Era um fenômeno desagradável, particularmente porque era um fenômeno de dupla personalidade. Nos Estados Unidos, eu era considerado um nacionalista, competente e duro. E aqui eu era considerado um entreguista. Eu lá tentava justificar as maluquices brasileiras. Aqui, eu as criticava abertamente, adotando um pouco um ponto de vista internacional mais objetivo. E sofri com essa confusão de imagem. A minha imagem no exterior é de um certo respeito, não é?
Folha - Qual foi o crítico que mais o machucou? O Lacerda?
Campos - É, o Lacerda, ele era infernal. Era de longe o mais capaz. Brizola sempre foi aquela crítica muito primitiva. O Lacerda era mais articulado. Ele era um fabricante de ``slogans" extraordinário, terrível. Eu passava parte do meu tempo tentando me defender do Lacerda, quase tanto como pensando coisas criadoras.
Folha - O sr. chegou a ter um debate pela televisão com ele?
Campos - Tive. Não foi propriamente um debate. Ele foi à televisão e fez discurso violentíssimo e eu fui logo depois.
Folha - Sem combinar nada?
Campos - Sem combinar. O Castelo é que me telefonou: ``Liga a televisão que o Lacerda está falando. Eu quero que o senhor responda". Eu fiz lá um discurso meio emocional e tal –o que é raro em mim– e o embasamento econômico dele era fácil de destruir, não tinha embasamento técnico. E eu citei lá um versículo da Bíblia em latim, que dizia que todo homem odiento será punido. E aí meus assessores –uma gente boa que está hoje aí, o Wilson Figueiredo, o Walter Fontoura, o Pedro Gomes–, eles falaram: ``Mas que desastre, você vai falar com um grande comunicador e vai me citando latim". Eu fiquei muito deprimido.
Aí, um dia, andando aqui na praia com a minha mulher, em Ipanema, de repente vem um negro enorme e me levanta assim para o ar –eu imediatamente pensei a manchete do dia seguinte: ``Ministro esbofeteado por um desempregado" e tal. Mas ele me põe no chão e diz assim: ``É isso mesmo, o Lacerda matou o dr. Getúlio, caga latim nele".

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