São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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Três dimensões da história

MARIO HENRIQUE SIMONSEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos últimos 40 anos, Roberto de Oliveira Campos participou da história econômica do Brasil em três dimensões. Num breve período em que esteve afastado da função pública, manteve-se como espectador influente pelo poder de persuasão e de crítica de seus artigos. No serviço diplomático e no BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) foi destacado ator coadjuvante. E no período 1964-1967 assumiu o papel de protagonista em dupla com Octávio Gouveia de Bulhões, sob a regência do presidente Humberto de Alencar Castello Branco.
Por isso, muito mais do que um livro de memórias, ``A Lanterna na Popa" é um documentário precioso sobre a evolução de nossa economia nesse período. À primeira vista, o alfarrábio assusta pela sua extensão de mais de 1.400 páginas. Mas a subdivisão em subcapítulos curtos torna a leitura bastante amena, permitindo que o leitor saboreie o estilo irreverente e a lógica aguçada do autor. Como disse Augusto Jefferson de Oliveira Lemos, o livro talvez achate, mas não chateia quem o lê.
Como apóstolo da racionalidade econômica, Roberto Campos teve que enfrentar duros embates desde o início da década de 1950. O nacionalismo varguista, moldado durante os anos da grande Depressão, quando os fluxos de investimentos externos praticamente estancaram, parecia-lhe um preconceito absurdo para um país com fome de capitais e tecnologia externas. A idéia de Vargas de que era possível distribuir renda aumentando salários nominais e, ao mesmo tempo, desestimulando as exportações soava como agressão aos princípios elementares de economia. Mas a capacidade crítica de Campos, àquela altura, era contida pela disciplina da carreira diplomática.
No governo Café Filho, Campos foi nomeado superintendente do BNDE, por indicação de Eugenio Gudin e Lucas Lopes, cargo em que continuou no governo Kubitschek para então passar a presidente do banco. Tratava-se do principal banco de fomento do país, e que iria desempenhar o papel fundamental no financiamento do Programa de Metas de JK.
A gestão Campos foi o período de ouro do BNDE, mas o economista-diplomata, pretendia ir mais além: influenciar os rumos da política macroeconômica, o que só era então possível por intermédio do ministro da Fazenda. No início, tudo foi fácil, pois o ministro era seu mestre Eugenio Gudin, inteiramente afinado com Campos e Octávio Bulhões, embora desse maior prioridade ao combate à inflação do que à reforma cambial. José Maria Whitaker, que o sucedeu na pasta da Fazenda, queria fazer a reforma cambial, mas era excessivamente tolerante com a expansão de crédito para fins produtivos. No início do governo Juscelino, enquanto José Maria Alkmin era o titular da Fazenda, não havia muito o que dialogar: austeridade, para ele, era atrasar a liberação de verbas aprovadas e, quanto à reforma cambial, nem pensar.
Em 1958, Alkmin foi substituído por Lucas Lopes que, junto com Campos, comandou a elaboração do Programa de Estabilização Monetária (PEM). Tratava-se de um projeto de austeridade fiscal ligado a um orçamento monetário que limitava em 10% a expansão dos meios de pagamento em 1959. Num exercício quantitativista previa-se que a inflação, então por volta de 20% ao ano, caísse para 5% em 12 meses. O PEM foi apresentado ao FMI, que o elogiou, mas pediu algo mais: a unificação das taxas de câmbio, com a consequente eliminação dos subsídios ao petróleo e ao trigo. Para o FMI, não fazia sentido a um governo engajado num ambicioso Plano de Metas subsidiar o consumo de bens importados sobretudo diante das crônicas dificuldades do balanço de pagamentos.
Acontece que JK estava ansioso por atender às reivindicações trabalhistas veiculadas pelo vice-presidente João Goulart, para aumentar o salário mínimo de Cr$ 3.800,00 para Cr$ 6.000,00 mensais. A reforma cambial, num primeiro impacto, implicaria a queda de salários reais, e portanto as duas medidas só se poderiam coordenar por um brutal aumento da taxa de inflação. E, mesmo sem reforma cambial, o PEM dificilmente se compatibilizaria com tão polpudo aumento do salário mínimo. Isto posto, animado pela esquerda festiva, Juscelino inventou a ruptura com o FMI, abandonando Lucas Lopes e Roberto Campos à execração dos nacionalistas e pivetes da UNE (União Nacional dos Estudantes).
Campos passou a dedicar-se à consultoria econômica privada até 1961, quando foi nomeado embaixador em Washington por Jânio Quadros, cargo em que foi confirmado por João Goulart. Coube-lhe aí a indigesta tarefa de convencer os norte-americanos de que Jango, apesar de populista, era um sincero democrata sem qualquer vínculo com os comunistas. Enquanto Tancredo Neves e Santiago Dantas estiveram no ministério, Campos desimcumbiu-se brilhantemente dessa missão, cujo ponto culminante foi a visita de Goulart aos Estados Unidos. Depois disso, demitiu-se com a necessária discrição diplomática.
As frustrações do economista e diplomata iriam ser recompensadas pela oportunidade única que teve em abril de 1964, quando foi nomeado ministro do Planejamento do governo Castello Branco. Foi o ponto de partida para o PAET (Programa de Ação Econômica do Governo) que iria abrir novos horizontes e novas dimensões para a economia brasileira. É isso o que nos conta o capítulo 12 de ``A Lanterna na Popa", certamente o mais interessante de todo o livro.
A indicação de um economista liberal para o Ministério do Planejamento parece um pouco paradoxal, mas aí valem três qualificações. Primeiro, em 1964 éramos todos mais keynesianos do que hoje, e Campos não constituía exceção. Segundo, a presença do Estado na economia brasileira era mais importante àquela época, em que a empresa privada nacional ainda era muito mais frágil, do que é hoje a privatização, cujas vantagens até a esquerda reconhece, seria inviável há 30 anos atrás. Terceiro, o importante no PAEG não eram as metas setoriais mas as propostas de reformas associadas à coordenação das quatro dimensões da política macroeconômica, a fiscal, a monetária, a cambial e a salarial. É importante sublinhar esses pontos.
As reformas econômicas promovidas pelo governo Castello Branco transformaram o Brasil antigo no Brasil moderno, com fôlego suficiente para o milagre do crescimento entre 1968 e 1974 e, de certa forma, até 1980. Uma foi a reforma fiscal, que começou eliminando incidências tributárias injustas assim como os incentivos à sonegação ou ao atraso no cumprimento das obrigações fiscais. Ela culminou com a Emenda Constitucional nº 18 de 1967, que deu ao Brasil um sistema tributário modelar, baseado nos Impostos sobre Renda, Produtos Industrializados e Circulação de Mercadorias, sem incidências em cascata ou destituídas de funcionalidade econômica. Outra foi a criação do BNH (Banco Nacional da Habitação) e do Sistema Financeiro da Habitação, que viabilizaram o duplo objetivo de estimular a construção civil e facilitar o acesso à moradia própria. A revisão da lei do inquilinato funcionou como linha auxiliar do SFH (Sistema Financeiro da Habitação).
Outra reforma essencial foi a criação do Banco Central. A lei do mercado de capitais ampliou e disciplinou a intermediação financeira nos mais variados níveis. A revisão da lei de remessas de lucros permitiu a volta dos capitais estrangeiros ao país. A criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço estimulou a poupança, o BNH e rompeu os impasses do antigo regime de estabilidade da Consolidação das Leis do Trabalho. A lei salarial, além de ser peça fundamental para o combate à inflação, nivelou os reajustes salariais dos diferentes grupos de trabalhadores, independentemente da força dos sindicatos. A permissão de que as concessionárias de serviços de utilidade pública remunerassem seus investimentos pelo custo histórico corrigido monetariamente dissolveu um ponto de estrangulamento que ameaçava paralisar o país.
O PAEG continha metas setoriais que eram meras extrapolações sem menor importância. Algumas eram realmente caricatas, como a da produção de ovos, detalhe a que se apegou Carlos Lacerda na sua fúria para ridicularizar o Plano. Contudo, o que importava era a coerência macroeconômica do PAEG, na coordenação das quatro políticas, a fiscal, a monetária, a cambial e a salarial. Nesse sentido, o PAEG estava anos-luz à frente do PEM. O mais importante, todavia, é que, como estrategista, Castello Branco também estava anos-luz à frente de JK.
Por certo, ao aceitar fazer a reforma cambial e tarifária que Kubitschek chutou para a frente, Castello assumiu o ônus de provocar uma compressão temporária dos salários reais. A culpa não foi da lei salarial, como se dizia na época, mas o resultado inevitável da eliminação de subsídios. Como disse Edmar Bacha, a lei salarial permitiu que, não obstante as altas corretivas de preços, a taxa de inflação baixasse.
Os adversários de Campos hoje o criticam por ter sido o inventor da correção monetária. A verdade é que, nos tempos do PAEG, a indexação era admitida como exceção, e nunca como regra, com dois únicos objetivos: viabilizar contratos a longo prazo e evitar distorções do sistema tributário, quer num sentido, quer no outro. A correção incendiária e que precipitou a hiperinflação dos anos recentes, foi o resultado da extensão da indexação a três áreas excluídas do PAEG: salários, taxa de câmbio e depósitos à vista. E o que o Plano Real pretende não é acabar com a indexação, já que memória inflacionária não se apaga, pois o povo não é imbecil. Mas trazê-la de volta aos limites de 1964.
Retrospectivamente, nunca a política econômica brasileira foi tão criativa quanto no governo Castello Branco. Em parte, isso se explica porque muitas das idéias de reforma já se haviam sedimentado em estudos de institutos de pesquisa e associações de classe. Contudo, tantas modificações em tão curto período de tempo só se explicam pela visão e coragem cívica do presidente e de seus ministros da Fazenda e do Planejamento. Castello fez questão de plantar para que Costa e Silva e Médici pudessem colher safras generosas.
Entre 1967 e 1974, Roberto Campos licenciou-se do Itamaraty para dedicar-se à vida empresarial, voltando então à vida pública como embaixador em Londres até 1982. Desde 1983, milita no Congresso Nacional, primeiro como senador por Mato Grosso, mais recentemente como deputado pelo Rio de Janeiro. Seu grande papel tem sido tentar infundir o mínimo de racionalidade econômica no Legislativo.
Na década passada, quando a elite política brasileira regrediu intelectualmente, sofreu vários revezes. Um primeiro foi a Lei da Informática de 1984, pérola de obscurantismo produzida pelo conluio da esquerda festiva com a obtusidade de alguns militares e a ganância de meia dúzia de empresários nacionalistas. Um outro mais profundo foi a promulgação da Constituição de 1988, aquela que colocou o Brasil na contramão da história. Mas, como diz um conhecido ex-ministro da Fazenda, há circunstâncias em que o mérito não consiste em fazer alguma coisa, mas impedir que se cometam mais tolices, e para isso críticas contundentes costumam ter alguma validade.
Esses revezes são vivamente narrados no capítulo 19 do livro. No mais, na década de 1990 a vingança está vindo de fora: com a derrubada do muro de Berlim e com o colapso da União Soviética, as elites brasileiras estão sendo obrigadas a digerir as lições que não quiseram aprender com Roberto Campos.

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