São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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A religião americana do `self'

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Liberdade, no contexto da religião americana, significa estar a sós com Deus, ou com Jesus –o Deus americano, ou o Cristo americano. Em termos sociais, isto se traduz em solidão, no sentido mais íntimo da palavra.
A alma se isola e algo de mais profundo que ela –o Verdadeiro Eu, ou identidade (``self"), ou centelha de vida– vê-se deste modo, liberado para estar a sós com um Deus que também é sozinho e solitário; isto é, um Deus livre, ou Deus da liberdade. O que torna possível essa comunhão livre entre o ``self" e Deus é o fato de que o ``self" já é de Deus: ao contrário do corpo, ou mesmo da alma, o ``self" americano não é uma parcela da Criação, ou da evolução das eras. Este ``eu" americano não é o Adão do Gênesis, mas um outro Adão, ainda mais primordial, um Homem anterior à existência de homens e mulheres.
O verdadeiro Adão é mais velho que a Bíblia; tem a idade de Deus, está livre do tempo, não carrega a mancha da mortalidade. Sejam quais forem as consequências sociais ou políticas desta visão, é extraordinária a sua força imaginativa. Nenhum americano sente-se livre se não estiver sozinho e, no fundo, nenhum americano se vê a si mesmo como parte da natureza.
A guerra travada há quatro anos entre os Estados Unidos e o Iraque foi uma verdadeira guerra religiosa, mas não uma que envolvesse espiritualmente o Islã, de nenhum dos lados. Pelo contrário, esta foi a guerra da religião americana (e de seus representantes no exterior, incluindo os aliados árabes), uma guerra contra tudo o que nega a condição e funcionamento do ``self" como verdadeiro critério da vida e dos valores. Nem a democracia, nem a propriedade privada estavam no centro da disputa.
O presidente Bush, que não é exatamente um paradigma da devoção, seguiu o modelo de Reagan e outros antecessores (Nixon, Ford, Carter) ao convocar Billy Graham, como um estandarte da religião americana. Perpetuamente de Bíblia na mão, ao lado do presidente, Graham parecia certificar que a guerra fora sancionada pelas Escrituras. A despeito do que possam afirmar, o judaísmo e o cristianismo tradicional não são religiões bíblicas; mas a religião americana sim, embora sua Bíblia esteja quase que inteiramente limitada a São Paulo (batistas do sul), ou então seja uma versão americana alternativa do texto original (mórmons, ou adventistas do sétimo dia, entre outros).
Sydney Ahlstrom chamou nossa atenção para a inexistência de uma teologia americana propriamente dita, embora também falasse (como, antes dele, Tolstói) de uma ``religião americana". De acordo com Ahlstrom, se essa religião teve um teólogo, foi Emerson. Vale então lembrar a seguinte observação de Emerson, sobre os Estados Unidos: ``Grande país, pequenas cabeças. A América é disforme, não tem nem as belas, nem as terríveis condensações." Isto foi escrito em junho de 1847, quando o sábio americano ainda mostrava ira pelo envolvimento de seu país na guerra do México –sendo o México o Iraque daquele momento na história dos Estados Unidos.
Seu comentário permanece, até hoje, verdadeiro. Nós ainda não temos forma. Nossa literatura, a despeito de uma linhagem central de romancistas e poetas –Hawthorne, Melville, Whitman, Dickinson, Mark Twain, Henry James, Frost, Stevens, Eliot, Faulkner, Fitzgerald, Hemingway, Hart Crane– ainda não nos deu a condensação bela ou terrível de um caráter nacional. Todos esses são autores fortes, mas todos tendem a guardar distância dos abismos órficos e gnósticos da identidade, ou ``self" nacional, sem o que correriam o risco de desaparecer nessa mesma identidade.
Se o que se quer mesmo é encontrar nossa ocasionalmente bela, ou frequentemente terrível condensação, então será preciso buscá-la nas formas sem forma da crença, nas extravagâncias implícitas das religiões afro-americanas, dos batistas do sul, dos mórmons, dos pentecostais e de outras variedades insolitamente americanas de experiência espiritual.
Nada poderia estar mais longe da religião americana do que o famoso dito de Spinoza, na ``Ética", de que quem verdadeiramente tem amor por Deus não deve esperar ser amado por Ele. A essência do americano é acreditar que Deus o ama –convicção compartilhada por quase nove de cada dez pessoas, de acordo com uma pesquisa do Instituto Gallup. É comovente viver num país onde a enorme maioria dos habitantes é de tal maneira um objeto do afeto divino. Quem sabe toda sociedade não pode gozar desse interesse tão sublime? –um privilégio, afinal, só concedido ao rei Davi, na Bíblia hebraica inteira.
O processo de democratização e americanização do cristianismo, bem estudado por Nathan Hatch e Jon Butler, talvez tenha se originado na revolução americana; ou então, pelo contrário, talvez tenha ajudado a fomentar a revolução. Não sendo um historiador, não posso dizer. Mas como um estudioso da religião, eu não deixo de me espantar com o caráter de revivescimento, ou ``revivalismo" da experiência religiosa americana.
O revivalismo, nos Estados Unidos, tende a ser esse choque perpétuo do indivíduo descobrindo, mais uma vez, aquilo que sempre soube; que Deus o ama, de uma maneira absolutamente pessoal e íntima. O nobre desinteresse de Spinoza, o amor intelectual por Deus é profundamente avesso ao espírito americano, ou pelo menos tem sido sempre assim, desde princípios de século 19, nesta nossa terra crepuscular.

Tradução de ARTHUR NESTROVSKI

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