São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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Sobre popas e proas

CAIO TULIO COSTA

Curiosa a maneira como Roberto Campos registra o tempo. O século 20 ficou no seu imaginário irremediavelmente ligado ao comunismo –apogeu e fracasso
Caio Túlio Costa
Roberto Campos deu a seu caudaloso livro de memórias título retirado de um verso do poeta e crítico inglês Samuel Taylor Coleridge, ``A Lanterna na Popa" (Topbooks, 1.418 págs. R$ 50,00). O nome vem a propósito, deseja mostrar um estado de espírito especial, o dos velhos e experimentados sábios.
Coleridge, que viveu entre 1772 e 1834, viciado em ópio, tentou criar, sem sucesso, um sistema filosófico para a arte e a poesia. No verso que serve de inspiração a Campos ele ensina: ``Mas a paixão cega nossos olhos, e a luz que a experiência nos dá é a de uma lanterna na popa, que ilumina apenas as ondas que deixamos para trás". O próprio Coleridge estava convencido de que o homem pouco aprende com a história.
Este versinho que encantou Campos já mexeu com muita gente. A historiadora norte-americana Barbara Tuchman, por exemplo, relativizou: ``É bela a imagem, mas enganosa sua mensagem –pois a luz nas ondas que já ultrapassamos poderia nos tornar aptos a inferir a natureza das ondas à frente".
Pois Roberto Campos chegou mesmo àquele momento em que paira por cima de tudo e de todos. Por isso pode, até com estudada humildade, afirmar nunca ter tido profundidade ou poder para erguer um farol que lançasse um facho de luz para as futuras gerações. ``No palco brasileiro, há que reconhecer que minha geração fracassou. Tendo tudo para atingir grandeza, o Brasil patina na mediocridade. Tendo tudo para ser rico, o país hospeda milhões de miseráveis." De acordo.
O homem que teve intimidade com o poder no Brasil desde novinho (entrou em 1939 no Itamaraty, quando tinha 22 anos), mandou e desmandou em políticas econômicas e participou de eventos históricos internacionais, nos dá agora uma lanterna. Serve para iluminar tanto as ondas que fez, as que ajudou a fazer e também as que conseguiu dobrar, deixando como rastro marolas que ainda nos balançam –para o mal ou para o bem, depende do ponto de vista.
Campos começa a introdução de suas memórias assegurando ter já vivido ``três quartos de séculos e mais que um século". Para ele, o século vinte começou em 1917, no mesmo ano em que nasceu, quando ainda soavam os canhões da Primeira Guerra Mundial e os bolcheviques venciam na Rússia a revolução comunista. E, para ele, o século acabou com a queda do muro de Berlim, em 1989, e o ``colapso do marxismo-leninismo".
Curiosa a maneira como intelectuais do jeitão de Roberto Campos, de estirpe conservadora, registram o tempo. O século 20 ficou no seu imaginário irremediavelmente ligado ao comunismo –apogeu e fracasso. À parte a própria noção de tempo, bastante discutível (Einstein mostrou que não há tempo universal, ao qual todos os eventos poderiam se relacionar de maneira unívoca), Campos também se exime de indicação temporal sobre o fracasso do próprio capitalismo em resolver os problemas que criou com o subdesenvolvimento no terceiro mundo. Aponta, no entanto, que está por surgir uma "nova ordem" cujos contornos ele mesmo não consegue discernir no que chama de brumas da história.
Na sua breve caracterização do fim do século, Campos deixa de defini-lo por exemplo, como aquele da bomba atômica ou da televisão, apesar de se preocupar, mais adiante, com as explosões dos nacionalismos. A idéia fixa do comunismo permanece latente e as sociedades de mercado mantêm-se como a solução possível no dito ``capitalismo democrático".
Tudo bem. Apesar da pseudo-humildade, Campos é pródigo em detalhes e, de propósito para negar o título irônico que deu ao livro, relata uma larga experiência que, se bem lida, lança luz para o futuro. Era tudo o que queria e seu livro é seu farol. Mesmo que não queira, suas peripécias, agora democratizadas, podem servir como lanterna de proa. Afinal, como contraponto, segue válida a velha noção de que a falta de experiência, no limite, é o melhor dos defeitos. Porque, com o passar do tempo, o defeito some.

Caio Túlio Costa é diretor de revistas da Folha de S. Paulo.
Ilustração: foto de Jeff Wall, ``Tropas mortas conversam. Visão depois de uma emboscada da patrulha do Exército Vermelho perto de Mogor, Afeganistão", inverno de 1986.

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