São Paulo, segunda-feira, 31 de outubro de 1994
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O novo presidente

FLORESTAN FERNANDES

Durante a campanha presidencial enfrentei várias pressões, algumas cobrando críticas imediatistas a Fernando Henrique Cardoso. Entendo que pertencemos a partidos que poderiam ser convergentes. Mas, tomaram vias opostas, o que me obrigava ao silêncio.
Fernando Henrique Cardoso foi meu aluno, trabalhou comigo e Roger Bastide como auxiliar de ensino. Convidei-o para ser primeiro-assistente quando me tornei responsável pela cadeira de Sociologia 1, na USP. Ao sair do Brasil, em 1964, resguardei o seu lugar intacto. De volta, quatro anos mais tarde, reagregou-se à equipe. Preparava-se, no entanto, para disputar o concurso da cátedra de política e tornou-se professor titular.
Como assistente, deu uma contribuição notável ao ensino e à pesquisa. Idealizou o Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho, fundado sob o governo de Carvalho Pinto. Não logrou, porém, desenvolver seus projetos na entidade, extinta pela ditadura militar.
Vizinhos em São Paulo, tínhamos contatos diários. Havia uma comunhão de idéias e de aspirações –constantemente redefinidas e parcialmente adiadas– que nos aproximava fraternalmente. No Chile, abriguei-me em seu lar. Era o primeiro reencontro após o golpe de 1964. A emoção foi tamanha que as lágrimas vieram aos meus olhos e aos dele. Todo um passado subia à tona. Outros contatos episódicos ocorreram, nos EUA, México, Alemanha etc., renovando laços morais e esperanças.
No início, foram seu talento, simpatia e capacidade de trabalho que me evidenciaram uma rara vocação sociológica. A qualidade de sua produção animou-me não só a convidá-lo, mas a formar com ele e com Octavio Ianni a cúpula da cadeira. Não travamos atritos amargos. Ao contrário, prevaleciam influências mútuas criativas.
Só recentemente sofri decepção imprevista. Foi perturbador vê-lo conformar-se com o bloco político de sustentação da ditadura e dos paladinos da reação. Como não sou político profissional, fiquei protegido de frustrações devastadoras. Cabia-lhe a liberdade e a responsabilidade de escolher. Mas a opção recaiu em uma tendência daninha, pelo que se observa na Europa, América Latina e Ásia.
Essa reviravolta não afeta minha amizade por Fernando Henrique Cardoso, que faço questão de conservar. Apenas constatei que a carreira política abriu uma brecha psicológica: temos frente a frente o grande cientista social e o político que tenta transmutar-se em estadista. Espero que vença a prova. Isso é difícil, pois envolve a perversão da social democracia e a debilitação do PSDB.
Sugere que, infelizmente, Fernando Henrique Cardoso está ansioso por ocupar o poder, ao mesmo velho estilo das elites, suscitando duas perguntas: o quinhão em perspectiva vale o sacrifício feito? A aliança assegura a solução dos problemas e dilemas sociais, econômicos e raciais seculares do Brasil? Duvido. Mas a sorte está lançada! Só nos resta esperar aonde conduz tão extravagante ``conciliação pelo alto".

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