São Paulo, segunda-feira, 31 de outubro de 1994
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Desgoverno e intervenção

ALBA ZALUAR

Jovens traficantes não usam rótulos; como serão identificados pelo exército inimigo?
É preciso, antes de mais nada, distinguir o problema nacional do problema do Rio de Janeiro. Transformar o Rio no ``problema", transferindo para lá, através dos mecanismos simbólicos das identidades contrastantes e dos preconceitos mal disfarçados, é fazer da cegueira acrítica e narcísica o eixo da auto-imagem, assim como da destrutividade o fio da identidade alheia.
O Brasil enfrenta hoje, especialmente nos Estados que são rota de passagem e grandes centros de consumo de drogas, como Rondônia, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná e Rio de Janeiro, entre outros, o crime organizado internacionalmente.
Este é multinacional, empresarial, polivalente e financeiro, visto culminar nas atividades de lavagem do dinheiro sujo. Onde ele está, a polícia passa a apresentar níveis mais altos de corrupção, as taxas de crimes violentos aumentam e a insegurança passa a fazer parte da vida cotidiana de todos.
Nas pontas do longo processo de comercialização de uma de suas mercadorias –as drogas ilícitas– ficam os bares, boates, pequenas lojas de sapateiros, motéis, hotéis e sabe-se mais o quê, onde qualquer um mais informado consegue comprar as de sua preferência.
Os jovens que começam como usuários de drogas, por causa da ilegalidade deste negócio e do alto preço de algum de seus produtos, assim como da dependência química ou psicológica que provocam, são levados a roubar, a assaltar e algumas vezes até a matar para pagar aqueles que os ameaçam de morte, caso não consigam saldar a dúvida.
Estas dívidas incluem as contraídas com traficantes, assim como as do esquema de extorsão dos policiais corruptos que podem abrir inquérito ou não conforme a propina recebida. Nesses inquéritos, que tornar-se-ão posteriormente processos na Justiça, os jovens irão figurar como traficantes ou usuários, conforme o depoimento do policial que deu o flagrante.
Estas são questões nacionais, que devem ser cooperativas e seriamente discutidas para não afundarmos todos na insegurança e no medo provocados pelo aumento dos crimes violentos.
O que faz o Rio de Janeiro enfrentar hoje um problema mais grave nesta questão é a presença de grupos de criminosos organizados desde a prisão, uma herança dos porões da ditadura, quando presos políticos ensinaram aos presos comuns as técnicas da guerrilha urbana e as táticas da mobilização e da organização políticas. Embora negada pelo governador, uma destas organizações continua a controlar as principais atividades dos grupos de traficantes que dominam os pontos de venda localizados nas favelas da cidade.
Como resultado da ausência de uma política habitacional, além da econômica, da cultural e da educacional, porque não se faz educação construindo prédios apenas, as favelas do Rio de Janeiro cresceram descontroladamente nos últimos 15 anos.
Além das tensões advindas da maior densidade populacional (algumas delas são hoje verdadeiras cidades sem arruamento nem nenhum planejamento), seus moradores, trabalhadores na quase totalidade, viram suas organizações vicinais, seus espaços de lazer, seus becos, e até mesmo suas casas, dominadas por grupos de traficantes cada vez mais bem-armados.
Seus jovens filhos, repetentes em escolas de baixa qualidade, sem perspectivas de emprego por causa da falta de um projeto econômico regional, sem orientação sobre os riscos das drogas oferecidas, tornaram-se candidatos a recrutas do crime organizado.
Fosse para pagar dívidas, fosse para se sentir mais fortes diante das mulheres, mais respeitados pela polícia, pelas testemunhas, pelos inimigos criados, alguns desses jovens acabaram entrando no círculo diabólico das quadrilhas de traficantes e assaltantes.
Na pesquisa que realizei num bairro do Rio, o percentual de pobres entre os que optaram pela carreira criminosa foi muito baixo: menos de 1% em relação ao total da população, ou 380 pessoas pertencentes às quadrilhas de traficantes e aproximadamente 1.200 pessoas envolvidas com roubos e furtos, de uma população calculada entre 120 mil e 150 mil pessoas.
São muito poucos os jovens que estão no centro da desagregação provocada pela violência, mas essa desagregação se espraia como mancha de óleo pelo resto da sociedade e tem trazido um enorme sofrimento a toda a população de um dos principais centros urbanos do país.
A ousadia de algum destes jovens é proporcional à sensação de poder incomensurável advinda da posse de armas de fogo poderosíssimas, entregues a eles por espertos adultos que quase nunca aparecem e que se encostam na impunibilidade dos menores de idade.
Do outro lado, a polícia que invade a favela para aumentar sua parte no butim ou para vingar corporativamente a morte de seus colegas, como aconteceu recentemente em Vigário Geral, Dona Marta, Nova Brasília. Entre dois fogos, a vida dos pobres trabalhadores favelados tornou-se insuportável.
Se a presença do Exército nas ruas pode ser tranquilizadora para a população, trazer um senso de realidade a esses jovens armados e um controle externo sobre a polícia desmoralizada, como imaginar a invasão de uma dessas favelas, sem visualizar uma carnificina?
Jovens traficantes não usam rótulos, nem uniformes, nem bandeiras. Como serão identificados pelo exército inimigo em ruelas superpovoadas? Que meninos os soldados brasileiros ou os fuzileiros navais irão matar na sua vez?

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