São Paulo, segunda-feira, 31 de outubro de 1994
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Um sim à vida

ANTONIO MOURÃO CAVALCANTE

Lamentavelmente, o país não tem nenhuma política de combate à droga; tudo é muito improvisado
Todos os dias a imprensa fala sobre drogas, seja nas páginas policiais, anunciando mais crimes, seja na editoria nacional, anunciando mais uma operação militar contra traficantes no Rio de Janeiro. Ou mesmo na área internacional, confirmando as tragédias do grande negócio, o terceiro maior do mundo.
A primeira impressão que extraímos dessas informações é imaginar que o combate às drogas é, prioritariamente, um problema de polícia. Havendo uma maior e mais coordenada repressão, tudo estará resolvido. Precisa-se de mais polícia e de polícia mais aparelhada. Em todos os cantos, fiscalizando tudo.
Essa é uma doce ilusão. Ou melhor, estamos atacando apenas uma ponta do problema. A parte ligada à oferta. Oferta que tem a ver com a produção, o refino, o transporte e a comercialização.
Se a polícia, continuando nesse raciocínio, é capaz de intervir, localizando as plantações –por exemplo– ou os laboratórios de refino e preparação de drogas, desmantelando o transporte e fechando os pontos de venda, estaremos salvos? Nossos filhos estarão, finalmente, protegidos de todos os riscos. Quem crê nisso?
Ora, há alguns complicadores nessa história. Vejamos alguns deles.
Quando vamos estudar as estatísticas sobre quais as drogas mais consumidas, verificamos que são exatamente aquelas permitidas pelas leis e pela cultura: o álcool e o tabaco. São disparadamente as mais consumidas e difundidas em nosso meio.
Como combater o uso abusivo dessas drogas, que atenção! –são tão mortais quanto as outras? Todos nós temos casos em nossas famílias de pessoas que estão morrendo ou já morreram por causa desses dois vícios. O que pode a polícia fazer no caso do álcool e do fumo?
Continuando a análise da lista, vem, em terceiro lugar, os inalantes. Desde a cola de sapateiro até o famoso cloretil (lança-perfume). Essas substâncias estão nos esmaltes, nos solventes, em muitos produtos que usamos e temos em nossas casas e que podem ser comprados em qualquer magazine. Éter, acetona, clorofórmio etc. O que pode fazer a polícia? Ou melhor, o comércio e o uso dessas substâncias, podem tornar-se um caso de polícia?
Outro imenso capítulo ligado ao consumo é o uso indevido de medicamentos. As bolinhas (anfetaminas), os tranquilizantes (benzodiazepinicos), os remédios de dormir e mesmo aqueles usados pela farmacologia em doenças específicas. Em grego, a palavra fármaco, tanto significa veneno como remédio.
Hoje em dia, muitas farmácias, espalhadas pelos bairros, são verdadeiras ``bocas de fumo". Tão ou mais perigosas quanto as verdadeiras. Quem trabalha com adolescentes sabe que eles usam muito esses tipos de substâncias.
A quem apelar? Como fazer um verdadeiro combate às drogas se estamos tratando com um campo tão vasto de hipóteses e possibilidades?
Não seria mais lógico deslocar o eixo de cima do produto (a droga em si) para um contexto psicossocial e cultural mais amplo? Será que a crise social que atravessamos, a falta de perspectivas econômicas associada à ausência de modelos sociais e culturais, a efervescência da adolescência, a falência dos modelos familiares, a rua, os grupos de amigos, as gangues, enfim, esse mundo que vivemos, não compõem muitas situações de risco? Como suportar tamanhos desafios sem fazer apelo ao sonho e à viagem? Isto é, não dá para entender que o problema droga seja apenas um caso de polícia. É um fenômeno muito mais complexo e de mais difícil abordagem.
Muitos países têm tentado soluções radicais. Uns investiram maciçamente em repressão. Caso dos Estados Unidos, nos tempos de Reagan. Chegou a mandar tropas militares invadir países à cata de plantações e traficantes. Política profundamente repressiva. O consumo nos EUA, nesse período, não diminuiu, e, obviamente, o próprio tráfico aumentou.
Outros países partiram para a liberalização, tipo Holanda e Suíça, chegando a possuir praças com distribuição de drogas e seringas para os usuários. Essa perspectiva, apesar do profundo respeito à democracia e ao direito de cada um, também revelou-se caótica.
A violência não diminuiu, nem o número de jovens drogados. Na realidade, tornou-se um espetáculo dantesco ver jovens rasgando suas veias em praça pública, esvaiando-se em sangue e morte.
Lamentavelmente, até hoje, o Brasil não possui qualquer política de combate ao uso indevido de drogas. As iniciativas na área de prevenção e tratamento são localizadas, esparsas e espontâneas.
O Conselho Federal de Entorpecentes, órgão normativo, ligado ao Ministério da Justiça, mostra-se totalmente impotente. Os programas mais consistentes são, em sua maioria, fruto da ajuda de organismos internacionais. O Estado mesmo, não tem qualquer dotação. É tudo muito improvisado e precário.
Nessas circunstâncias é natural que a sociedade, mais uma vez acuada, faça desesperado apelo à força, chamando a polícia, e agora, até as Forças Armadas, para essa cruzada que deveria ser de todos e não apenas repressiva! Uma pena.
Será que nós temos medo de nossos jovens? Eles são nossos filhos.

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