São Paulo, quarta-feira, 2 de novembro de 1994
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Briga de domingo sintetiza obra-de-arte

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Esse quebra-pau de domingo foi uma verdadeira obra-de-arte. Sim, porque o que se exige, basicamente, de uma obra-de-arte é a síntese de um universo de situações e personagens, escrita, esculpida, desenhada ou encenada com talento. E ali, em pleno Morumbi, durante cinco ou dez minutos, desfilaram todas as situações e personagens que compõem o universo do nosso futebol, suas mazelas, sua grandeza, dramaticamente exibidas com todas as nuances de cores e ímpetos que compõem o perfil da alma humana.
Lá estava a figura exemplar do cartola, Khalef João Francisco: um classe média típico, semi-alfabetizado, convicto de todos os seus valores morais, que encontra na dedicação física ao clube de sua paixão a fresta por onde alcançará a luz dos refletores, ainda que breve e ilusória. No duro, apenas um torcedor fanático, como milhões de outros que povoam os bares deste interminável Brasil, aqueles que encontram no futebol campo fértil para a catarse, contraponto ao tédio do dia-a-dia programado pelo temor do desconhecido.
Como nas discussões do almoço do domingo em família, depois da terceira caipirinha, com a alma cheia de razão, ele se insurge contra quem? Contra Edmundo, o protótipo do jogador-problema. Um garoto vindo do mais baixo extrato social, que desde menino tinha à sua frente duas portas: a da marginália ou a do futebol. A tragédia ou a glória. Com seu talento natural, abriu a porta certa, mas não fechou a outra, que lhe permite espiar de vez em quando o que lhe estava também designado. A saudade do que não foi. E esse destino está acima de suas forças; pega sua mão, a espalma e dá um tapa em Juninho.
Certa noite, a noite em que foi proclamado o AI-5, em 68, o brutal soco na cara do Brasil desferido pelo regime militar, jantávamos no Patachou, um bistrô francês da rua Augusta, já falecido. Lá estávamos o multimídia Fernando Faro, o ator Juca de Oliveira, o genial diretor de teatro Flávio Rangel e eu. Na mesa ao lado, um típico filho das Arcadas, de terno e gravata, já embalado por meia-dúzia de uísques. Enquanto lamentávamos as trevas a que havíamos sido atirados, o rapaz fazia intromissões provocativas. Pedi-lhe para calar-se. Ele retrucou: "Vai tomar no...". A frase foi cortada nesse exato instante por um murro certeiro. E Rangel exultava: "Isso é teatro! Teatro puro! Na deixa, pimba!, a ação".
Pois, na deixa (fala final que aciona a sequência do diálogo ou da ação) de Juninho, o tapa de Edmundo e a entrada em cena dos demais protagonistas. Entre eles, três atletas de Cristo: Gilmar, Muller e César Sampaio, entre muitos outros que o juiz não anotou. E, em meio à tragédia que se esboçava, uma cena de comédia-pastelão: Edmundo discute com seu desafeto, arma o punho e desfere um direto mortífero. O alvo era Muller, mas a vítima acabou sendo André.
Resumindo: a junta disciplinar punirá todos os envolvidos, mas o tribunal da CBF os absolverá, pois perdeu a moral no caso William. E desce o pano.

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