São Paulo, quarta-feira, 2 de novembro de 1994
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Glória e opróbrio

ANTONIO DELFIM NETTO

Temos insistido com frequência e solitariamente que a política cambial introduzida com o real é irresponsável.
A flutuação do câmbio foi prematura, sem que os "fundamentais" estivessem ajustados. Ela só pôde ser utilizada porque os burocratas não precisam explicar as suas ações e porque o presidente se encontra claramente interditado pela glória efêmera de ter terminado (brilhantemente, diga-se de passagem) com a inflação inercial.
Se ele ao menos imaginasse o risco a que está expondo a economia brasileira, certamente se cuidaria, porque tal "glória" pode transformar-se, no longo prazo, no mais terrível "opróbrio".
Mesmo do ponto de vista teórico, a taxa de câmbio flexível encontra sérios problemas. A sua construção nos anos 60 utilizou hipóteses selvagemente desmentidas pelos fatos.
Ela prometia liberdade de ação para a política interna e relativa estabilidade da taxa real de câmbio, o que permitiria um mundo com maior liberdade de comércio. E, o que é melhor, os bancos centrais não precisariam ter reservas!
E o que entregou quando foi introduzida no início dos anos 70? Exatamente o oposto! Cada uma de suas hipóteses foi desmentida pela realidade.
Uma das conclusões centrais da teoria da taxa flexível é que o funcionamento do mercado manteria a taxa real de câmbio relativamente estável. A realidade revelou-se muito diferente.
Apenas para dar um exemplo, a libra inglesa depreciou-se em termos reais 15% no período 1975-76, para apreciar-se mais de 60% no período 1977-1980, graças à mudança das "expectativas" com a vitória dos conservadores e a descoberta do petróleo no mar do Norte. Isso levou à insolvência grande número de indústrias inglesas, inclusive a Rolls-Royce, que fabrica turbinas de jato, por falta de competitividade no mercado americano!
Como imaginar que variações tão bruscas podem ser respostas a modificações dos "fundamentais" que determinam a taxa de câmbio real no longo prazo? É claro que quando a taxa de câmbio real se altera por efeito da competição tecnológica, modificações nas relações de troca ou outros fatores reais que requerem o seu ajustamento, tais alterações devem ser vistas como necessárias e até saudáveis.
O problema é outro. É que frequentemente as modificações da taxa real de câmbio se devem a fatores temporários (como a disposição do capital internacional de explorar os benefícios de uma absurda taxa de juro interna) e que serão revertidos no futuro, mas terão produzido grave dano ao processo produtivo.
A tolice de produzir um real supervalorizado por conta de um movimento de capital aleatório é apenas mais uma amostra da preferência pelas "finanças" sobre a "produção" que domina os economistas do governo.
Tem razão o ditado inglês: "Os médicos costumam enterrar os seus erros. Os economistas vivem e prosperam com os seus".

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