São Paulo, quarta-feira, 2 de novembro de 1994
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Reforma previdenciária e cidadania

JOSÉ MARTINS FILHO

Por que previdenciários deveriam pagar por erros da União depois de terem contribuído por décadas?
Com as notícias de que o novo governo dará prioridade à reforma constitucional, visando a pavimentar o caminho para o enxugamento do Estado, volta a pairar sobre a cabeça do trabalhador a preocupação –que se julgava afastada desde o fim do governo Collor– sobre como será tratada a questão da seguridade social e particularmente a aposentadoria por tempo de serviço.
O assunto é delicado, não só por seu imbricamento histórico com a questão do financiamento da saúde, de que a caixa previdenciária foi até há pouco o principal sustentáculo, mas também porque compõe uma equação complexa que traz, de um lado, um sistema que se sabe ameaçado em suas bases e, de outro, a gama de contribuintes previdenciários que espera ver honrado o contrato social uma vez firmado entre eles e o governo.
A recente eleição presidencial demonstrou que a sociedade quer reformas (a reforma da saúde, a reforma tributária e principalmente a reforma da educação), mas quer também a estabilidade naquilo que concerne a seus direitos de cidadania, sem a ameaça e a violência de choques que, no passado recente, em nome de uma suposta felicidade coletiva, levaram de roldão garantias individuais que se julgava intocáveis. A poupança foi uma delas.
Nesse contexto, é evidente que o anúncio da reforma previdenciária, em bases que não se sabe direito quais sejam, satura o ar de um certo nervosismo que tanto mais se agrava tanto mais os apocalípticos de plantão começam a dar como certo o cancelamento ou, no mínimo, a desfiguração de uma política social tão duramente conquistada.
Parte-se em geral do argumento de que o sistema previdenciário está falido e não suportará por muito mais tempo a proliferação geométrica do número de aposentados. Provavelmente é verdade.
Porém causa estranheza e até mal-estar a frieza matemática com que esse argumento contábil é invocado, sem que se faça qualquer alusão às razões pelas quais a caixa previdenciária foi levada à bancarrota nos últimos 20 anos.
Com efeito, talvez seja o caso de indagar se alguém fez as contas dos recursos previdenciários carreados para outras rubricas da União, ao longo das últimas décadas, sem que seu retorno se tenha verificado, na ponta do lápis, em direção aos cofres do sistema. Ou se já se contabilizou a dívida da União para com a Previdência, por falta de recolhimento sistemático dos encargos referentes ao funcionalismo público federal. Ou se já se fez a somatória dos rombos perpetrados no interior da máquina previdenciária –punidos alguns, mas não resgatados– e sua influência na débâcle administrativa da seguridade.
São coisas que a sociedade não ignora e que põem em dúvida a teoria da inviabilidade do sistema, permitindo acaso especular sobre como estaria a caixa previdenciária se o sistema tivesse sido bem administrado.
Quatro anos de boa administração talvez demonstrem que o reequilíbrio das contas previdenciárias tem mais a ver com o cerco fiscal aos sonegadores, com a caça implacável à fraude institucionalizada e com a correta utilização de seus recursos do que propriamente com o peso específico da massa de aposentados.
De resto, parece legítimo perguntar por que os previdenciários deveriam pagar por erros históricos da União depois de terem contribuído religiosamente, durante décadas, para a manutenção da caixa segundo alíquotas que o próprio governo estipulou.
E cabe também indagar se a um governo social-democrata (cujo escopo se conhece) parecerá socialmente justo atirar a aposentadoria para as calendas quando se sabe que o horizonte de vida dos trabalhadores brasileiros não ultrapassa a média dos 64 anos.
Claro que, no conjunto das mudanças que se fazem necessárias, a questão da seguridade não está imune. É um tópico em rediscussão até mesmo nos países com políticas sociais estruturadas. Mas que essa rediscussão não se faça com a dureza e o pragmatismo gerencial que conhecemos de outras épocas, muito convenientes para os inícios de governo, mas ruins para a cidadania.

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