São Paulo, quarta-feira, 2 de novembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A revolta da vacina

JOSÉ DA ROCHA CARVALHEIRO

O preconceito não é bom conselheiro dos educadores sanitários dos dias de hoje
Respeito profissional e amizade exigem franqueza para serem preservados. No artigo "Vacina bombástica" (Tendências/Debates, 19/10), os amigos Vicente Amato e Jacyr Pasternak pisaram na bola: os profissionais falharam, instaurando confusão e dúvidas num terreno já complicado em demasia.
Devo ao professor Amato o convite para dirigir o Instituto de Saúde e coordenar parte do projeto de vacinas HIV/Aids financiado pelo Ministério da Saúde e pela OMS (Organização Mundial de Saúde). Elaborar o projeto, a ser submetido à OMS, com prazo fatal, exigiu esforço enorme de uma equipe de jovens e competentes médicos, infectologistas, psicólogos, sociólogos, epidemiologistas.
Nada mais fizemos, eu e a professora Mary Jane Spink, coordenadora da pós-graduação em psicologia social da PUC (Pontifícia Universidade Católica) e investigadora principal do componente comportamental do projeto, do que orientar o ardor com que se lançaram à tarefa. Ficaria calado se essa omissão não soasse conivente com a insinuação malévola sobre "motivação de caráter material".
Especialmente porque nossa equipe tem varado noites em busca de contatos mais efetivos com ONGs e com o grupo populacional alvo da investigação: homens que fazem sexo com homens.
Ao afirmarem que "o estudo é bastante simples", Amato e Jacyr se referem às fases primeiras da investigação de qualquer vacina (segurança e imunogenicidade). Não devem ter percebido os prejuízos que seu artigo traz para os estudos preparatórios da fase final da investigação de uma vacina nova (eficácia).
Estes, chamados estudos de mundo real na literatura epidemiológica, envolvem milhares de voluntários que somente podem ser recrutados num processo de extrema complexidade. Que apele para o espírito altruísta de grupos populacionais merecedores de respeito e em relação aos quais não pode existir o menor laivo de discriminação social.
Atribuir "má compostura sexual" aos homens que fazem sexo com homens não contribui para combater a epidemia da Aids. O preconceito não é bom conselheiro dos educadores sanitários modernos e, no caso do recrutamento de milhares de voluntários para um estudo epidemiológico e comportamental, é fatal.
Um dos objetivos do estudo preparatório é conhecer a dinâmica da infecção, num coletivo que poderá vir a ser alvo, nunca antes de quatro ou cinco anos, de um ensaio de eficácia de algum protótipo de vacina, então disponível. Essa disponibilidade é um conceito complexo.
Em relação a ela há muito a discutir: não basta haver um produto e um laboratório interessado. Terá de haver consenso, no meio científico e na sociedade, a respeito do balanço vantajoso entre riscos e benefícios. Impregnado de considerações de natureza ética, um consenso dessa natureza exige cuidados especiais.
Em junho, o Instituto Nacional de Saúde dos EUA não autorizou a realização de um teste de mundo real (eficácia) de dois protótipos de vacina apresentados por dois laboratórios. A comunidade científica não estava inteiramente convicta da segurança e a balança pendia mais para o prato dos riscos individuais do que dos benefícios coletivos. A sociedade, especialmente os ativistas do grupo "ACT UP", teve papel saliente. Outro elemento essencial, num estudo preparatório, é saber como se posiciona o grupo em relação a um possível ensaio de vacina. É o ponto crítico, que exige competência profissional específica.
Trata-se de mergulhar no âmago das representações sociais da saúde e da doença em geral. Dos traços que constituem um comportamento altruísta e, portanto, de encontrar o caminho para um recrutamento futuro que não pode ser inteiramente aleatório. Isso vale para qualquer vacina.
No caso de HIV/Aids a complexidade é ainda maior, por envolver grupos da população definidos a partir de comportamentos e de práticas frequentemente discriminados, proscritos e até criminalizados.
Recrutar milhares de homens que fazem sexo com outros homens, com alto risco epidemiológico de infecção, suficientemente motivados para expressar seu altruísmo submetendo-se a um ensaio de vacina e que, ao mesmo tempo, não se sintam discriminados e estigmatizados por participarem do teste, é tarefa de extrema dificuldade.
Nesta fase preparatória, sem nenhuma vacina envolvida, nossa equipe matou três leões por dia para conseguir, em aproximados 70 dias, escassos 31 voluntários. O estrago que pode causar para o prosseguimento do nosso estudo o artigo de Amato e Jacyr só pode ser evitado com ampla discussão pública da controvérsia da vacina anti-HIV/Aids.
Passados quase cem anos, continuamos a tratar de maneira emotiva a questão da vacina no Brasil. A Revolta da Vacina conturbou o Rio de Janeiro, no início do século, em graves manifestações de rua contra Oswaldo Cruz e a vacina antivariólica e marcou indelevelmente o imaginário popular.
Erradicada há duas décadas em todo o mundo, a varíola deixou de ser um fantasma amedrontador. Sua erradicação deveu-se a campanhas de vacinação em massa e à vigilância epidemiológica.
A Aids é o fantasma deste final de milênio. A vacina sozinha não será capaz de conter a epidemia. Os programas de prevenção, eliminados os preconceitos, deverão basear-se em linhas modernas de educação sanitária, que ultrapassem os acanhados limites das mensagens aterradoras.
Um país sério não pode, no entanto, negar-se a estar preparado para a realização de ensaios de vacina no mundo real, com milhares de voluntários. Se esses ensaios virão a ser executados um dia, dependerá da segurança com que o produto puder ser aplicado. Dependerá, sobretudo, de um pré-requisito essencial: estar preparado, através de estudos preliminares, para a execução dos ensaios. O que inclui a existência dos voluntários.
Espero que, do debate, surjam maiores esclarecimentos a respeito da controvérsia da vacina anti-HIV/Aids. E que não se corra o risco de reeditar a Revolta da Vacina. Que, contraditoriamente, tanto poderá ser contra quanto a favor.

Texto Anterior: Reforma previdenciária e cidadania
Próximo Texto: Indústria automobilística; Análise do PT; Biografia de Assis Chateaubriand; Prostituição; Dinheiro da privatização; Eucaliptos; Free Jazz; Rodovias; Baixaria em campo; Vitória de Cuba
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.