São Paulo, quinta-feira, 3 de novembro de 1994
Próximo Texto | Índice

Febre do eclipse contamina a literatura

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Hoje, depois das 9h40, quando o sol se tornar um círculo de breu, algumas moças apaixonadas sentirão certa elevação da temperatura de seus corpos. Elas serão acometidas pela febre do eclipse. Em consequência, alguns homens, os homens que cruzarem seus caminhos, poderão enlouquecer.
Ao menos é isso o que acontece no romance do escritor Walter Abish, 63, que a editora Imago lança hoje no país, "Febre do Eclipse".
Um dos mais inventivos escritores atualmente dos EUA, autor de "Alphabetical Africa" e "How German Is It", Abish conseguiu em "Febre do Eclipse" o que muitos pós-modernos invejariam: uma trama atraente numa narrativa anticonvencional. O romance se passa no México e é uma divertida discussão sobre como culturas separam pessoas.
Sobre seu romance e a necessidade de "revitalizar" a literatura, Abish deu por telefone à Folha, a entrevista abaixo.
Folha - Em seus livros há sempre o choque entre civilizações, como se preconceitos culturais fossem intransponíveis. O sr. acredita nisso?
Walter Abish - Não. Quando escrevi "Alphabetical Africa", nunca tinha estado na África. Quis explorá-la exclusivamente por meio da imaginação. Não é um estudo político da África, é um romance. Meu interesse é a experiência da alteridade; isso é o que me motiva.
O mesmo ocorreu em "How German Is It". Neste romance eu queria entender as coisas que se dizem quando o assunto Alemanha vem à tona –os preconceitos, as justificativas de que partimos nessas conversas.
Eu não queria que os três livros fossem tidos como uma mesma coisa –deixo isso aos críticos. Sou um viajante contumaz; meu único interesse é como as pessoas enxergam as outras, suas suspeitas e manias. Em Nova York todo mundo desconfia de todo mundo, por exemplo. É uma sociedade cada vez mais polarizada.
Não há uma intenção "multiculturalista", ou o que seja, em meus livros. O multiculturalismo é a morte da imaginação. Arte não é argumentação, não é ideologia.
Folha - Mas por que o tema da alteridade, das diferenças culturais, é tão caro ao sr.?
Abish - Em parte porque é um resultado de minha história pessoal. Nasci em Viena, depois vivi em Nice (França), na China, em Israel, onde me casei, e então morei de novo na França, na Inglaterra e agora estou nos EUA.
Folha - Alejandro Mucho, no livro, é continuamente induzido à corrupção. Isso porque ele é um crítico e, portanto, julga o tempo todo a alteridade?
Abish - Acho que a pergunta é se o médico pode curar sua própria doença. Ou seja, será que Mucho se enxerga? Paradoxalmente, ele é um crítico que não tem memória, que não se lembra de sua infância, cínico, quase sem afeto. De repente, no entanto, ele decide ajudar o americano a encontrar a filha. E é muito inteligente. Há uma instabilidade de tom, de identidade nele que me atrai.
Folha - Bonny é a única boa pessoa do romance, incorrupta...
Abish - Ela é muito nova. Mas é também uma sedutora, de certa maneira; ela seduz o pai dela, tenta afastá-lo da outra mulher.
Folha - Mas ela é algo ingênua, faz tudo de maneira espontânea, inconsciente. A consciência é necessariamente cínica?
Abish - Eu não chegaria a dizer isso, mas as coisas me parecem um pouco assim hoje em dia.
Folha - Muitos romances escritos depois da Segunda Guerra têm escritores como personagens, ou tratam do escrever, e são eruditos. O do sr. também é assim. Mas, ao mesmo tempo, "Febre do Eclipse" é seu livro menos "experimental"; a trama tem importância. Por quê?
Abish - O que é escrever experimentalmente? É escrever como reação a, ou rejeição a, romances "sérios", que pontificam. Toda experimentação demonstra uma consciência do passado. O romance "sério", que conta uma história individual, que faz um retrato psicológico, está virtualmente morto. Não vale mais a pena atacá-lo. A maioria dos livros escritos hoje são dirigidos por uma causa: feminismo, multiculturalismo. São motivados por ideologia.
O romance sério não é mais lido praticamente; foi aniquilado na América. O romance experimental não tem mais o que atacar, ele pode agora contar uma história etc. Estou exagerando, mas acho que você me entende.
Folha - O sr. acha que a literatura contemporânea tenta fazer uma mistura de gêneros? "Febre do Eclipse" não é nem psicológico nem ideológico; desenvolve idéias e cenas. Essa é a saída?
Abish - É uma maneira de revitalizar a literatura. E precisa ser muito irônica também. Não sei até que ponto a ironia em "Alphabetical Africa" pode ser percebida, mas acho que "Febre de Eclipse" é muito irônico, muito engraçado, e pode ser lido em diversos níveis. Isso é o que tento fazer.
Folha - Em "Alphabetical Africa" há uma estrutura ditada de fora: a ordem alfabética dos capítulos. O romance experimental em geral é assim, parte de um formato imposto. "Febre de Eclipse" já abandona isso. Por quê? É um desejo de não ser asséptico?
Abish - "Alphabetical Africa" é de 1974. Minha vontade era evitar que o livro tratasse de um mundo familiar, de uma África familiar, era "desfamiliarizar" o leitor. Daí a estrutura, a construção exposta. Em "Febre do Eclipse" não senti essa necessidade.
Folha - No romance sentimos uma idéia mexicana de fatalismo, que parece contaminar todos os personagens, mexicanos ou não. Por quê?
Abish - Isso foi extremamente deliberado. Quis dar essa sensação ao leitor e, com ela, um dinamismo ao livro. Nos EUA não há esse fatalismo; aqui não há interesse pelo passado, vive-se no presente.
Você vê nas ruas as pessoas ouvindo "walkman", que parecem incapazes de ouvir a elas mesmas. É muito estranha e problemática esta sociedade. Daí meu interesse pelo fatalismo, pela noção de que o passado nos impõe um futuro, de que o curso histórico não pode ser alterado.
Folha - Há também no livro a presença da natureza. Bonny quer ver um eclipse solar. E essa natureza parece conflitar com a cultura atual. O sr. acha que nossa sociedade perdeu a consciência de que pertence à natureza, de que as pessoas são também regidas por instintos naturais inevitáveis?
Abish - A cultura americana, sim. Estamos separados de nós mesmos, estamos separados da natureza. Acho irônico que Bonny acabe vendo o eclipse pela TV.

Próximo Texto: Livro costura trama através de ironias
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.