São Paulo, quinta-feira, 3 de novembro de 1994
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Livro costura trama através de ironias

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Alguns escritores recorrem ao abandono de toda sutileza para se contrapor às linguagens contemporâneas, com seu universo de sexo, violência e anarquia verbal. Imitam seu mau-gosto barulhento para não desaparecer no mundo do videoclipe, da história em quadrinhos, do cinema de efeitos visuais e da síntese televisual.
Walter Abish também acha que a literatura corre o risco de sumir, mas, para lutar contra isso, lança mão de armas bem mais simples. Confia essencialmente no poder que a articulação de palavras e frases tem de criar ironia, de fazer duplo sentido, de levar a ambivalência ao máximo –um poder interdito à imagem e ao palavrão.
Seu livro, "Febre do Eclipse", é o resultado dessa convicção. Irônico sem pausa, rico em camadas de leitura, culto e cético, é de um dinamismo incomum na chamada "alta literatura" de nossos tempos. Nunca é chato porque sua ironia se nutre não só da argúcia verbal, mas também de dois saudosos componentes da ficção mais convencional: trama e personagens.
Assim, não pense que Abish é mais um desses escritores que os críticos adoram (foi elogiado por eminências como Harold Bloom e John Updike) e os leitores abandonam antes da página 20. Por enquanto, é verdade, só tem o "succès d'estime", o sucesso entre a minoria intelectual, mas isso há de mudar em breve, se ele insistir na linha de "Febre do Eclipse".
Sátira
Nesse romance de 1993 Abish deixa certa secura experimental, certa anestesia cerebral de seus dois anteriores, "Alphabetical Africa" (1974) e "How German Is It" (1980), e solta a pena da galhofa. Satiriza críticos literários, empresários com idéias mirabolantes, bajulação a autores de best-sellers, ingenuidade americana, casamento e por aí vai.
Vale-se sobretudo de uma trama bem tecida, que intercala histórias individuais, num encordoamento de episódios e gêneros. As duas histórias principais que se alternam são a do crítico mexicano Alejandro Mucho, que é abandonado pela mulher, Mercedes, em troca de um romancista americano; e a da adolescente Bonny, filha do escritor, que decide ir ao México ver um eclipse solar, se envolve com tráfico de obras de arte e acaba desparecida.
Ele: um intelectual sem identidade, cínico, que não sabe se suas origens são indígenas ou espanholas, mas descobre que não pode se livrar delas. Ela: uma adolescente sedutora, que vive no presente dos tubos catódicos, movida por um desejo extemporâneo que não pode explicar. Essas duas vidas, depois de peripécias mil, vão ter um encontro como o que lua e sol terão hoje: por um raro e ligeiro momento, serão coincidentes.
Como a demonstrar que natureza e cultura são indissociáveis, Abish, sem descrever um cena de sexo qualquer, torna a fusão de Alejandro e Bonny uma cópula cósmica. (DP)

Livro: Febre do Eclipse
Autor: Walter Abish
Quando: a partir de hoje nas livrarias

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