São Paulo, quinta-feira, 3 de novembro de 1994
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Para falar das flores

No dia de Finados, o costume é parar para lembrar de parentes e amigos mortos. Lembrança que ao mesmo tempo nos desperta para valores que ultrapassam o cotidiano material, projetando uma reflexão sobre a luta pela sobrevivência que consome nossas vidas.
Entretanto, o cotidiano distante irrompe sem aviso, onde era menos esperado. Afinal, em torno dos cemitérios há também um mercado. Flores e velas, elementos rituais, também têm preço. E que preço.
Levantamento da Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab), publicado ontem pela Folha, mostra que o preço das flores variou até 900% em São Paulo. Quem se dirigiu à cidadela dos mortos teve que esbarrar e provavelmente sujeitar-se, à entrada, a uma comunidade de negociantes muito vivos.
Não há explicação objetiva para tamanha dispersão de preços. Entre um e outro ponto de venda não há distâncias incalculáveis, nem se trata de imaginar que o custo de produção da mesma flor possa variar tanto. Não se trata sequer de uma súbita escassez de oferta. Afinal, a prefeitura autorizou a instalação de nada menos que 187 barracas adicionais de flores e velas em 20 cemitérios. Mas não há tabelamento para o preço das flores e velas. Constata-se o absurdo, mas não há vivalma capaz de se responsabilizar ou corrigir tal estado de coisas.
Se o problema não é de oferta, nem de custo de produção ou de transporte, poderia o súbito aumento de procura justificar aumentos e variação de preços tão fantasmagóricos? Os 900% parecem mesmo inexplicáveis pelas leis da economia. Impera, na prática, outra lei: uma lei da selva, uma avidez incontrolável que se sacia à custa do bem comum. E que grassa quando ainda não se consolidou completamente entre os consumidores a noção de valor das coisas. Preços abusivos ainda "pegam".
A inflação de Finados pode parecer um caso isolado. Mas a dispersão selvagem dos preços é uma evidência dolorosa e inoportuna de uma cultura inflacionária insepulta –se é que de fato morreu.

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