São Paulo, sábado, 5 de novembro de 1994
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Exército pode se tornar convidado perigoso

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Eu tenho à beira do mar, em Maricá, uma casa que foi assaltada outro dia. Em geral só ocupamos a casa, minha mulher e eu, nos fins-de-semana e não temos caseiro residente. Foi fácil ao ladrão arrombar a porta, no meio da semana, e servir-se. Nossa faxineira, que mora perto e vai à casa todos os dias, nos comunicou o roubo por telefone, e a Maricá fomos, para cumprir o dever de dar parte à polícia, depois de avaliarmos o prejuízo.
Roubaram, é claro, a televisão, roupa de cama, uma mesa, um armário de banheiro. Mas pelo menos não eram ladrões violentos, raivosos, pensei. Não quebraram por quebrar, não destruíram o que não levaram. Deixaram na parede, em seus caixilhos, belas gravuras de Carlos Scliar. Não tocaram numa Sant'Ana de pau, pernambucana, com Nossa Senhora Menina em pé e de mãos postas, dentro da barriga da mãe.
Assim, fui aos poucos me consolando. Citei para mim mesmo Proudhon: "A propriedade é o roubo". E me deu uma curiosidade sobre Proudhon. Procurei uns dados a seu respeito em "To the Finland Station", de Edmund Wilson. Era filho de um humilde tanoeiro, mas estudou a ponto de ensinar grego, latim, hebreu. E de chegar à conclusão que durante muito tempo encantou Marx e me servia de bálsamo agora: "La proprieté c'est le vol". Roubar, portanto, seria apenas passar a outro dono um objeto que não pertence a ninguém, pois a propriedade é injustificável.
Aí fiquei curioso de saber se Proudhon jamais teve ladrão em casa, pois constatei, pesquisando mais fundo, que os ladrões de Maricá me haviam levado um antigo binoclinho de teatro, alemão, com o qual eu costumava olhar as gaivotas, e uma lanterna elétrica japonesa, dessas que a gente recarrega ligando a lanterna na tomada.
O binoclinho era muito do meu afeto e a lanterna, o objeto mais prezado dos meus netos, gêmeos. Voltei, agora com certo ressentimento, ao livro de Wilson e pesquisei a vida de Proudhon numa enciclopédia, chegando à conclusão de que de fato ele nunca teve a casa assaltada. Ou, se teve, não contou a ninguém, para não perder a frase.
Pobres ricaços
A mídia brasileira deu muito maior destaque à fundação, por Steven Spielberg, de um estúdio que promete tomar conta da indústria cinematográfica do que à doação por ele feita, de nada menos que US$ 2 milhões, ao Museu do Holocausto, de Washington.
O referido estúdio só pode dar certo, pois reúne três self-made men que ficaram milionários trabalhando na poderosa indústria do "entertainment": um certo David Geffen, na música, Jeffrey Katzenberg, que ergueu das cinzas os estúdios Disney, e o nosso Spielberg, que partiu das mais descaradas receitas de sucesso (como "Tubarão", "E.T." e "Parque dos Dinossauros") para compor seu grave e monumental adendo ao Velho Testamento que é "A Lista de Schindler".
Spielberg é o maior artista americano deste século. Com a "Lista" ele conquistou seu régio lugar mesmo entre os romancistas americanos de origem judaica, que são os melhores da literatura americana atual, como Saul Bellow e Philip Roth.
Ora, tem tudo a ver com a carreira desse artista incomum a entrega que acaba de fazer de uma fortuna ao Museu do Holocausto. A doação é uma continuação de "A Lista de Schindler". Spielberg realmente faz questão de que ninguém esqueça o inferno que os nazistas montaram na Europa. A lembrança monumental está no Museu do Holocausto. A lembrança vital, desesperada, há de aterrar o mundo para sempre, em "A Lista de Schindler".
Além disso, a doação prova que Steven Spielberg, menino pobre que foi, mal se transformou em milionário americano já cuida de transferir um pouco da fortuna que fez para obras de sua devoção.
No Brasil, não me espantou nada que a doação mal se noticiasse. A notícia tem algo de inacreditável para nós. Nossos ricaços são tão avarentos que nos fazem crer que os de outros países não podem ser diferentes. As universidades americanas, por exemplo, vivem em grande parte de doações particulares. Os ricos de lá (que têm também o estranho hábito de pagarem seus impostos) fazem doações que ligam seus nomes às artes, à cultura, à caridade.
Eu só conheci, de vê-lo em carne e osso, um milionário brasileiro que pensou a vida toda em transformar seu patrimônio em bem de todos. Raimundo Castro Maia. Colecionou arte brasileira, descobriu e comprou pranchas inéditas de Debret, morou em casas lindas cercado de boa arte brasileira e européia e, ao morrer, legou tudo isso ao povo brasileiro. Deu grandes festas em sua Chácara do Céu. Agora, sem ele, a festa é permanente, "open house".
Mas nossos ricaços devem considerar Castro Maia meio ruim da cabeça, détraqué, como se dizia antigamente. Não querem deixar seu nome ligado a frivolidades como cultura ou educação ou –pela madrugada!– caridade. Contentam-se em ter o nome gravado em letra de mármore ou bronze no São João Batista ou na Consolação. Que a terra lhes seja leve.
Ensaio geral
Com trágica simplicidade Josias de Souza descreveu na Folha (31 de outubro) o ensaio geral da tragédia que o Brasil está querendo encenar: "A miséria não bate mais à nossa porta: invade. Não estende a mão diante do vidro do carro: arranca o relógio dos braços distraídos. No Brasil de hoje, resumido pela realidade do Rio, a riqueza é refém da miséria". O Rio resume o Brasil. Posto sob alguma espécie de controle militar, o Rio deixa de ser uma calamidade carioca: é um vaticínio para o resto do país.
Militar brasileiro gosta tanto de ser chamado a restabelecer a ordem nas ruas quanto uma solteirona de ser convidada a jantar fora. Só que o jantar pode durar 20 anos, como durou a partir de 1964.

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