São Paulo, sábado, 5 de novembro de 1994
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O exemplo da Lei Seca

MARIA LUCIA KARAM

SIM Quem derrotou a violência da Chicago dos anos 30 não foram os 'intocáveis', foi o fim da Lei Seca
MARIA LÚCIA KARAM
A posse de drogas para uso próprio é conduta privada. Não havendo destinação a terceiros, existe apenas eventual ameaça de dano à saúde do consumidor, constituindo a criminalização intervenção indevida do Estado na esfera de privacidade do indivíduo.
Há mais de um século, ao falar sobre a liberdade, Stuart Mill lembrava que o fato de alguém se fazer mal poderia ser uma boa razão para que os demais com ele ponderassem ou tentassem persuadi-lo, mas jamais para que o obrigassem a mudar.
Se, em relação ao consumo, a descriminalização é imperativo nascido do necessário respeito à liberdade individual, na vertente do tráfico o que a recomenda são os pesados ônus que a ilegalidade traz.
Além de impedir uma discussão racional e um maior controle sobre todas as drogas (a artificial distinção entre drogas lícitas e ilícitas "demoniza" umas e minimiza os riscos decorrentes do abuso de outras, como o álcool e o tabaco, a que se permite até mesmo uma inaceitável publicidade), a criminalização, introduzindo uma variável artificial na estrutura do mercado, provoca brutal elevação nos preços, gerando enormes lucros e assim paradoxalmente funcionando como um dos mais poderosos incentivos à sua produção e comércio.
Há outro efeito mais grave: ao tornar ilegais determinados bens e serviços, como o jogo e as drogas, é a própria proibição que cria a chamada criminalidade organizada, simultaneamente trazendo a violência e a corrupção como subprodutos necessários dos negócios assim desenvolvidos.
Por outro lado, a ineficácia da repressão é evidente: os empresários (grandes ou pequenos) e os empregados destas empresas ilegais, quando presos ou eliminados, são facilmente substituíveis por outros igualmente desejosos de oportunidades de emprego ou de acumulação de capital. Oportunidades que, por maior que seja a repressão, subsistirão enquanto presentes as circunstâncias socioeconômicas favorecedoras da demanda criadora do mercado.
É até possível que a descriminalização acarrete um aumento do uso. O exemplo histórico, vindo da proibição do álcool nos EUA, entretanto tranquiliza: a elevação do consumo posterior à descriminalização foi pouco significativa, nada indicando que seria diferente com as drogas hoje qualificadas de ilícitas.
De todo modo, os problemas que um aumento do consumo possa gerar são infinitamente menores do que os que vivemos com a proibição, seu tratamento tendo espaço para melhor se fazer sem os complicadores que a ilegalidade provoca.
A história tem ainda um outro exemplo a dar. O preço da ameaça à liberdade e à democracia que o Rio dos anos 90 já aceitou pagar, entregando às Forças Armadas o comando de um aparente combate às drogas, além de excessivamente alto, é enganoso e inútil.
Quem derrotou a violência da Chicago dos anos 30 não foram os "intocáveis" de Eliot Ness. Foi simplesmente o fim da Lei Seca.

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