São Paulo, sábado, 5 de novembro de 1994
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O perigo de atitudes isoladas

ANTONIO SCARANCE FERNANDES

O problema do tráfico e uso de entorpecentes merece tratamento sério e adequado ao momento. Corre-se o risco de soluções apaixonadas, até bem-intencionadas, mas que não enfrentam as questões principais, não consideram a realidade jurídica do país e não enfocam o tema de maneira global. Uma dessas propostas é a de descriminalização.
Quanto ao tráfico, ela não é possível juridicamente e nem é conveniente.
A Constituição Federal refere-se expressamente ao tráfico como crime, colocando-o ao lado dos crimes hediondos. Por outro lado, o Brasil acolheu a Convenção de Viena contra o tráfico e propôs-se a combatê-lo em harmonia com outros países.
É grande o perigo de uma atitude isolada. Assim, eventual liberação do tráfico transformaria o Brasil, em pouco tempo, no paraíso dos grandes cartéis internacionais, com todas as sequelas negativas daí decorrentes e sobejamente conhecidas.
A questão é mais complexa em relação ao porte para uso. Mas, também aí, a descriminalização não é solução.
De nada adiantaria se não fosse acompanhada de sensível melhoria no quadro da saúde pública, para proporcionar ao usuário e dependente adequado tratamento. Nesse aspecto, pouco se pode esperar.
A situação do usuário tenderia a piorar. O uso não é punido. São poucos os casos em que alguém, pelo simples fato de portar a droga, permanece preso ou é processado. Mais raro é ser condenado e cumprir pena.
Com a liberação, como sucedeu em outros países ante a dificuldade em diferenciar, de pronto, usuário e traficante, criam-se critérios distintivos inseguros e há forte inclinação a, na dúvida, considerar o portador como traficante, mantendo-o preso até que seja acusado ou julgado.
Entre nós, o problema se tornaria mais sério, porque o agente seria enquadrado na Lei dos Crimes Hediondos, sem direito à liberdade provisória, ficando preso até a sentença.
Há outras dificuldades: qual droga seria liberada? O que fazer com quem utiliza, ostensivamente, a droga em escolas, recintos públicos? O viciado poderia dirigir veículos? Que atitude tomar com aquele que, em praças públicas e praias, joga seringas, colaborando para a disseminação da Aids?
Ninguém discute a necessidade de aprimoramento legal. É mister separar entre o verdadeiro traficante e o pequeno fornecedor.
Quem porta entorpecente para uso não deve ser punido, deve ser tratado, orientado, acompanhado. O melhor, na linha de projeto em tramitação no Congresso, é, após a acusação, suspender o processo durante um certo tempo e sob condições, sem necessidade de pena.
Em casos de reiteração, a sanção poderia ser a prestação de serviços à comunidade que, se bem aplicada, traria efeitos mais benéficos do que a simples liberação.

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