São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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Déjà vu

Coisas ou situações podem ser anormalmente familiares. Às vezes, por um átimo, temos a sensação de já ter vivido aquilo, como que em sonho ou pesadelo. É o "déjà vu".
Não é outra a sensação que perturba toda a sociedade brasileira hoje. O ministro do Planejamento propõe o prolongamento do IPMF, imposto que se afirmava provisório. O da Fazenda dispara uma retórica metralhadora giratória contra os que supõe inimigos da estabilidade. Estimativas desencontradas de rombo nas contas públicas frequentam o noticiário. A inflação parece estabilizada num "patamar", mas há forças poderosas provocando aceleração de preços. Pacotes desabam sem prévio aviso. Tarifas são contidas pelo governo.
Não é 1982, nem 1986, 1989 ou 1990. Mas o final de 1994 dá uma evidente sensação de "déjà vu".
O Plano Real enfrenta dificuldades em três níveis: nos fundamentos, na gestão de curtíssimo prazo e na dimensão política. Em cada caso tem-se a impressão de que impera uma inoportuna procrastinação.
"Fundamentos" são os aspectos econômicos dos quais depende a confiança na estabilidade. Na Argentina, por exemplo, aprovou-se uma lei determinando a plena conversibilidade da moeda local em dólares, obrigando o governo a manter rígida a política monetária.
Já no tipo de regra que instaurou a "âncora cambial" brasileira se percebem grandes diferenças. Descartou-se a conversibilidade. Transferiu-se ao poder discricionário do Banco Central a responsabilidade pela gestão do câmbio. O resultado é um sistema cujas regras não param de mudar. E como a inflação tem sido ascendente, naturalmente coloca-se em dúvida o próprio compromisso do Banco Central com a atual política cambial.
O equilíbrio das contas públicas é outro fundamento crucial quando se trata de avaliar quão sustentável é a estabilidade econômica. Nesse terreno também há margem para dúvidas. Já se fala num rombo potencial em 1995 de pelo menos R$ 7 bilhões. Economistas colocam a hipótese de aumentar a retenção na fonte do Imposto de Renda, para resolver ao mesmo tempo o problema fiscal e, diminuindo a renda disponível, desaquecer o consumo. E o IPMF, lado a lado com uma miríade de taxas e tributos, permanece como obstáculo à própria retomada do crescimento econômico.
Na gestão de curtíssimo prazo as dificuldades tornaram-se gritantes. A inflação rompeu a casa dos 3%. Mesmo os mais otimistas imaginam que ela assim prossiga até janeiro.
Coloca-se em primeiro plano o risco de reindexação dos contratos, mesmo que à revelia do governo. Na prática isso já ocorre por exemplo através das antecipações salariais. Mostrou-se indiscutível, ainda que lamentável, a incapacidade crônica da economia brasileira de fazer frente com rapidez a um aumento de consumo. Mesmo as importações, que inicialmente se imaginava cumpririam o papel de amortecer as pressões de demanda, têm-se revelado insuficientes.
Finalmente, faz falta um horizonte político mais claro. À eleição em primeiro turno de Fernando Henrique Cardoso seguiu-se um anticlímax. É verdade que ainda falta o segundo turno em Estados importantes. É igualmente notório que o presidente Itamar Franco afinal faz questão de degustar seu mandato até o último instante, voluntária ou involuntariamente constrangendo as iniciativas políticas do presidente eleito. Ainda assim, o fato é que a falta de um horizonte político mais claro contribui para criar um clima de frustração e cansaço diante das dificuldades que se acumulam. Natural, portanto, o "déjà vu".

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