São Paulo, quinta-feira, 10 de novembro de 1994
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Arvo Pãrt substitui Deus por estilo gótico

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Há traços de "hype" na estratégia de lançamento dos CDs com obras do compositor estoniano Arvo Pãrt (pronuncia-se "pért"), 59. Acaba de chegar ao Brasil o CD "Te Deum", com quatro obras para coro e orquestra de Pãrt.
O disco foi lançado na Europa em agosto. Ele reinicia no Brasil o lançamento do catálogo da gravadora alemã ECM, sediada em Munique. A sigla da gravadora significa "Editions of Contemporary Music" (edições de música contemporânea).
Em 25 anos de atividade, consolidou 500 produtos de alta qualidade. O dono da ECM, o ex-contrabaixista Manfred Eicher, se ocupa pessoalmente da produção de cada disco. As capas são quase sempre monocromáticas e a música possui uma arte-final que hoje é identificada com a onda "new age", embora a tarja não confira com o denso experimentalismo jazzístico ou erudito da maior parte dos discos.
Até 1995, a ECM terá lançado no Brasil, via BMG, 41 discos do pianista Keith Jarret, 11 do guitarrista Pat Metheny, além de trabalhos do saxofonista norueguês Jan Garbarek e do músico brasileiro Egberto Gismonti.
O CD "Te Deum" é o quinto disco de Pãrt pela ECM em dez anos de contrato com a gravadora. Compositor contemporâneo associado a gravadora é fato inédito num meio em que artistas vivos são rechaçados.
Foi o CD "Tabula Rasa", de Pãrt, que lançou, em 1984, a New Series da ECM, linha de discos voltada a obras de músicos desconhecidos ou esquecidos.
Na época, Pãrt ostentava dupla aura. Era a um tempo o dissidente da Estônia, que então pertencia à União Soviética, e o carola gótico, capaz de fazer música modal arcaizante em plena vigência do pós-serialismo.
Sua música vingou no mercado por um terceiro termo. Era palatável aos novos ouvidos, sovados no rock'n'roll e no muzak. Melodia monocórdica, harmonia modal fixa, silêncios revezando com explosões de intensidade e um misticismo ambivalente, tudo caiu bem na sensibilidade sedenta de fantasminhas da fé.
"Fratres", uma peça instrumental que é um pedal só, sustentado ao longo de 20 minutos, virou hit dos contemporâneos descolados, fartos dos chatos seriais Boulez e Stockhausen.
A ECM lançou "Àrbos" (1987), "Passio" (1988) e "Miserere" (1991), obras que consolidam o estilo do compositor.
A música de Pãrt pode ser definida como neogótica. Exibe uma busca de fundamentalismo sonoro apoiada num misticismo contemporâneo, descrente e "cult".
A taxa de redundância no estoniano é alta. Pouco tem a ver com as conturbações emocionais de outro "darling" atual, o polonês Henryk Górecki.
Além do "Te Deum" (1993), o CD traz "Silouans Song" (1991), "Magnificat" (1989) e "Berliner Messe" (1990-1992).
São todas composições que buscam, nas próprias palavras de Pãrt, algo "evanescente". "Eis-me, sozinho com o silêncio. Descobri que é suficiente uma única nota ser tocada de forma bonita", escreve o compositor.
Não importa o texto sacro ou o ressaibo de experimento. O "hype" em Pãrt é a perda da fé erigida como monumento religioso. Com o estertor de Deus, a música substituiu a religião.

Disco: Te Deum
Intérpretes: Orquestra de Câmara Tallinn e Coro de Câmara Filarmônico Estoniano
Lançamento: EMC/BMG
Quanto: R$ 20 (o CD, em média)

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