São Paulo, quinta-feira, 10 de novembro de 1994
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"Terça Nobre" transforma conto de Lima Barreto em besteirol sem graça

HÉLIO GUIMARÃES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lima Barreto foi citado em vão em "O Homem que Sabia Javanês", apresentado na última "Terça Nobre" da "Globo". O programa, "inspirado" no conto do autor, como estava nos créditos, inspirou-se pouco e o transformou em peça de besteirol. E o que é de fato grave: besteirol sem graça.
A intenção não era, claramente, ser fiel ao texto literário. Isso fica explícito, por exemplo, na remota relação entre o personagem principal do programa, interpretado por Marco Nanini, e aquele que dá título ao conto.
O descompromisso com o original também se revelou na inserção de novas personagens, como Dorinha (Fernanda Torres) e Elise (Giulia Gam), que nem constam do conto original.
Agora, esqueça-se a existência de Lima Barreto. A histrionice do seu personagem foi confundida com pura histeria, que se generalizou por todo o elenco do programa.
O exagero das interpretações em "O Homem que Sabia Javanês" não se limitou a enfatizar em largos gestos cada palavra proferida pelos atores e descambou para a gritaria.
Seguindo a fórmula, já gasta, de carnavalizar tudo –afinal, isso dá um toque "brasileiro" e "popular" ao que quer que seja–, o programa forçou a relação entre Java e o Brasil através da transmutação de clichês como "Java, terra de contrastes", "o javanês é antes de tudo um forte" e "Deus é javanês".
Na transposição do conto de Lima Barreto para a TV, o único achado foi a utilização de cenas documentais, com informações enciclopédicas sobre Java, que deram conta de ilustrar o único tipo de conhecimento do professor de javanês sobre a língua do país polinésio.
Por que, em 1994, é preciso recorrer a um conto escrito há 83 anos para tematizar o poder e o fascínio que a cultura de enciclopédia e superficialmente erudita pode assumir em um país "imbecil e burocrático" como o Brasil? Esse é, em resumo, o assunto do conto escrito por Lima Barreto (1881-1922).
O especial, ao invocar o escritor e sua obra, fez justamente aquilo que Lima Barreto critica em seu conto. Utilizou-se da cultura livresca, ancorada em estantes cheias de livros comprados a metro e mal lidos, para atrair e eventualmente impressionar a audiência.
Quem esperava alguma fumaça do conto de Lima Barreto comprou gato por lebre.

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