São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Reflexões sobre a Era dos Dinossauros

LUIZ GONZAGA BELLUZZO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os crentes e os neo-convertidos à religião da "economia de mercado" proclamam que as políticas de desenvolvimento executadas pelo Estado foram a desgraça do capitalismo e demonstraram a inviabilidade do socialismo.
Teriam suscitado orientações distorcidas que levaram à má alocação de recursos, à ineficiência micro-econômica, ao descuido com as normas de competitividade. Além disso, estas políticas enredaram o Estado nas malhas dos grupos "predadores de renda", que lançaram o ente público, primeiro, na incontinência fiscal e monetária e, em alguns casos, no descalabro macroeconômico da hiperinflação.
Deste ponto de vista, os gloriosos anos cinquenta, sessenta e, ainda, boa parte dos setenta, revelaram-se um doloroso engano. Engano que fez prosperar o populismo econômico, uma forma perversa de politização da economia que se exprimiu, sobretudo nos países em desenvolvimento, num "ethos" nacionalista protecionista e antimercado.
Essa retórica antiintervencionista, pró-mercado e livre cambista corresponde, na verdade, a uma reação contra a "perversão" histórica do capitalismo encarnada, entre 1945 e 1973, na ordem internacional de Bretton Woods, no Estado do Bem-Estar e no "desenvolvimentismo" dos países do 3º Mundo.
As forças sociais e os homens de poder incumbidos de reconstruir as instituições capitalistas e democráticas no pós-guerra estavam convencidos de que era necessário evitar a repetição do desastre dos anos 20 e 30. Isto exigia a construção de uma ordem econômica internacional capaz de alentar o desenvolvimento, sem obstáculos, do comércio entre as nações, dentro de regras monetárias que garantissem a confiança na moeda-reserva, o ajustamento deflacionário do balanço de pagamentos e o abastecimento de liquidez requerido pelas transações em expansão.
A construção e a gestão desse ambiente internacional favorável encontraram resposta adequada nas reformas promovidas nas instituições e nas políticas dos Estados nacionais. As novas instituições e as políticas econômicas do Estado Social estavam comprometidas com a manutenção do pleno emprego, com a atenuação, em nome da igualdade, dos danos causados ao indivíduo pela operação sem peias do "mecanismo econômico". Estas eram as vigas de sustentação do "consenso Keynesiano" que se rompeu em meados dos anos 70.
As mudanças tecnológicas, nas formas de concorrência, na organização e estratégia da grande empresa e na operação dos mercados financeiros, ocorridas nas duas últimas décadas, parecem justificar a visão que celebra a supremacia dos mecanismos econômicos –da lógica do mercado– sobre as tentativas de disciplinar e domesticar as forças simultaneamente criadoras e destrutivas do capitalismo.
Depois de algum tempo encapsuladas pela sociedade e pelo Estado, as "tendências fundamentais" executam sua vingança: vigorosa economia de tempo e desvalorização do trabalho, intensificação da concorrência à escala planetária e, no mesmo processo, concentração e centralização de capitais, que se alimentam do caráter "patrimonialista" dos novos mercados financeiros e estimulam a autonomização da valorização fictícia da riqueza.
Eric Alliez sugere que esta renovação do capitalismo, em gestação desde o crepúsculo da era keynesiana, "exige duas coisas: 1º) que a fluência mercantil não seja mais entravada, que ela possa difundir-se livremente em todas as malhas do tecido social; e 2º) que graças a esta difusão o objetivo de rentabilização do capital assume a forma de uma ética individual, mesmo para aqueles que não pertencem à classe capitalista".
Quanto ao Estado Nacional, ninguém duvida de que sua ação econômica está severamente restringida: é débil para enfrentar as estratégias de localização e divisão interna do trabalho da grande empresa e não dispõe de meios para contrabalançar as tensões geradas nos mercados financeiros, que submetem a seus caprichos as políticas monetárias e cambial.
Mais importante é que a tendência à fragmentação do espaço econômico avança de mãos dadas com o seu contrário, a homogeneização individualista. Produto e pressuposto do "consumismo diferenciado de massas" –que se expande à escala mundial–, este novo individualismo encontra reforço e sustentação no aparecimento de milhões de empresários "terceirizados" e "autonomizados", criaturas das mudanças nos processos de trabalho e na organização da produção.
Os outros efeitos dessas transformações são a decadência econômica de muitas regiões, o crescimento do desemprego estrutural e a proliferação de formas de precarização do emprego. A estas forças negativas o Estado e a sociedade não podem responder com as ações compensatórias de outros tempos porque cresce a resistência à utilização das transferências fiscais e previdenciárias e aumentam as restrições à capacidade impositiva e de endividamento do setor público, acarretadas pela erosão da "velha" base tributária e pelo "veto" dos mercados financeiros.
A ação do Estado é vista como contraproducente pelos bem-sucedidos e integrados e como insuficiente pelos desmobilizados e desprotegidos. Estas duas percepções convergem na direção da "deslegitimação" do poder administrativo e da desvalorização da política. Aparentemente, estamos numa situação histórica em que a "Grande Transformação" se move no sentido de libertar a economia dos grilhões da sociedade. Resta saber que respostas a sociedade está preparando para dar às façanhas da economia "desentranhada" e apenas limitada por suas próprias leis de movimento.

LUIZ GONZAGA DE MELLO BELLUZZO, 52, é professor Titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas) e assessor especial de assuntos internacionais do Estado de São Paulo (governo Fleury). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo José Sarney) e ex-secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).

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