São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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A identidade impossível da América Latina

luta de classes, muito falso nele, que cria na concórdia das ordens e no corpo místico do reino; de outro, dá a Marx um tom espiritual, católico.
Destacaria a seguir o artigo de John Beverley sobre a "poesia cortesã e festiva" da colônia. O desinteresse da crítica por essa produção, para ele, explica-se pela aplicação de "critérios de gosto estético formados essencialmente pelas poéticas da ilustração, o romantismo e o formalismo literário moderno", que não admitem o "caráter utilitário" da poesia.
Nota ainda que a tendência da crítica é considerar a poesia do período colonial como uma espécie de "infância" daquilo que seria "uma expressão 'nossa', americana, que (supomos) chega a sua própria culminação ou 'meio-dia' na literatura moderna". Contudo, essa imaturidade suposta "depende em si da ótica historicista de um liberalismo 'modernizador' de raiz essencialmente oitocentista", dominante nos estudos latino-americanos. Em contraste com essa opinião fundada num princípio orgânico, nacional e evolucionista da literatura, Beverley entende ser a poesia encomiástica a principal atividade literária da colônia, em que o poeta busca sua "inserção direta" na estrutura de poder. E, dado que, no período, não faz sentido pensar-se em uma "produção cultural autônoma" e individual "que se dirige ao Estado", mas sim em uma "produção do Estado, que é sua condição de possibilidade", julga que a "poesia culta" funcionava aí "como um discurso legislativo, coextensivo com o discurso dos meios e fins da razão de Estado".
Assim, propõe que a bucólica "incrivelmente intelectualizada" de modelo gongórico, transportada para a colônia de tantos analfabetos, multiplica-se em encômios e formas cortesãs menores, e passa a constituir um "novo gênero poético pós-épico em que as atividades cotidianas da sociedade civil colonial, em seu estamento mais alto, podiam ser representadas e idealizadas". A despeito de esquemático, aplicando com excesso de confiança a totalização operada pelas noções de "barroco" e "razão de Estado", apelando mesmo para anacronismos como o da idéia de uma "estética" –que não pode designar adequadamente a arte em que não há autonomia da poética frente à retórica, à política ou à teologia–, o estudo é muito instigante.
Fecha esta seção o artigo sobre a "tradição mágico-hermética e a literatura científica no século 17" de Dario Puccini. Após notar nos escritos de Sigüenza y Góngora, Inés de la Cruz e até em Vieira "tímidas e significativas razões de patriotismo e de orgulho nacional criollo", atribui aos modelos jesuítas certo "sincretismo" que vai "antecipar" o século posterior, bem na trilha contra a qual alertava Beverley, páginas atrás.
Insistindo na "modernidade", no "precoce", Puccini descobre "agudas possibilidades de prefiguração e de antecipação" ilustradas mesmo em textos que remetem à visão ortodoxa do mundo como alegoria factual de Deus. Se, ao fim das obras, elas acabam não sendo efetuadas, isso se deveria à sua "incompleta maturidade" ou à "espessura excessiva de sua convencida literariedade", dada sobretudo pela presença do topos do desengano, "tão persistente e obstaculizante em todos os escritos do Século de Ouro espanhol".
Ou seja, em nome da essência prefigurada, Puccini julga prejudicial à arte de Sóror Juana a própria base conceptual que a produz: a topicalidade dos assuntos e a centralidade do conceito de desengano. Querer conhecer a produção do 17 evitando tais aspectos é estar certo de não encontrá-la, ou encontrá-la deste modo bastardo em que não passa de empecilho ao desdobramento de uma consciência ilustrada.
E após considerar que Sigüenza y Góngora e Juana Inés acabam sucumbindo às convenções, Puccini supera-se: assimila ao pretenso fracasso a imagem "prometeica e fáustica" de uma "derrota gloriosa", que vai relacionar ao mito de Faetonte, morto pela ousadia de conduzir o carro do Sol. Em Sóror Juana, Faetonte é o "modelo precursor do cientista exposto aos riscos das radiações nucleares ou ao contágio da Aids".
Seria tocante talvez este Faetonte canceroso e aidético não fosse vulgar demais: não bastasse a crítica à autora que há, em nome da que deveria haver, ainda faz de sua obra uma imagem de carnaval para turista, cuja experiência hard não exime da entrega martirológica. O desnível em relação ao artigo anterior é tão flagrante que revela um efeito colateral do espírito globalizador do projeto de compor uma história da literatura latino-americana: reuniu-se de mais, segundo a vontade de cobrir o terreno mais extenso possível, e selecionou-se de menos, de acordo com a qualidade dos ensaios.
Na unidade seguinte, destacaria o artigo de Antonio Dimas, que faz um breve balanço da fortuna crítica de Gregório de Matos até o trabalho recente de João Adolfo Hansen. Este desloca a discussão anterior ao mostrar que a pretensa subversão político-literária da obra atribuída a Gregório deve interpretar-se como aplicação de processos previstos pela retórica seiscentista, que valem como "correção" a reforçar a organicidade hierárquica do Estado.
Para Dimas, porém, Hansen "submete uma voz dissonante a um cânone rígido" e "esvazia o individual em proveito do coletivo", desconsiderando "a ciranda de léxicos de sonoridade nativa, e portanto menos nobre, rodopiando no poema e colidindo com uma outra, de estirpe lusitana e européia, portanto nobre". A meu ver, contudo, esta formulação compreende mal o estudo de Hansen, que não pretende dissolver o individual no cânone, mas mostrar que frequentemente o que aparece como individual para o leitor moderno está regulado por convenções.
Nesse sentido, a inovação léxica de africanismos e indigenismos não é negada pelas preceptivas: ela está prevista como efeito agudo a ser efetuado. Para tratar a questão à maneira de Beverley, a "sonoridade nativa" ou "os elementos mestiços concretos na poesia colonial estão destinados a produzir –geralmente com intenção mais ou menos satírica– um 'efeito mestiço' precisamente para pessoas não mestiças". Nada a ver com a negação dos efeitos artísticos individuais, mas sim de que signifiquem uma contestação do cânone.
Isto é especialmente verdadeiro para elementos "menos nobres", cujo uso está regulado nas principais poéticas do 17. No "Tratado dos Ridículos", Tesauro discorre sobre a utilidade de lidar com a matéria baixa: "Ora, não deves ter nojo de filosofar sobre Matérias nojentas para colher quase que da lama as gemas de uma Arte nobre". Ou seja, as retóricas do período, com a arte do misto própria delas, a admissão do "riso com dor" e o seu gosto casuísta, incentivam a multiplicação de efeitos, até os sórdidos, como eficácia corretiva de defeitos em situações diversas.
Os artigos são muitos. Ao lado dos de Mix, Cunha, Beverley, são ótimos os de J.P. Duviols, Adriana Valdés, Beatriz de Weinberg, Edith Pinto, entre outros. Desisto, contrariado, de comentá-los. Mas não de enunciar um ponto incômodo ao fim dessas 600 páginas. Quando se reúnem autores e temas tão diversos, como explicar que não haja qualquer reflexão em torno das idéias de um estudioso tão importante do período colonial como Sérgio Buarque? Apenas dois artigos o citam, em rodapé: Cunha, para recomendar a sua análise do imaginário dos conquistadores; Ávila para dar o crédito da expressão "visão do Paraíso". Estamos mobilizando vários pesquisadores para construir uma identidade duvidosa, que a história das práticas letradas nunca conheceu e, ao que parece, dispensamo-nos da melhor tradição crítica que o país pôde efetivamente lograr. Pergunto-me por quê.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)

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