São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Arqueologia musical de Minas

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

O musicólogo alemão naturalizado uruguaio Francisco Curt Lange fez uma dedução que alterou a história da música colonial latino-americana. O pensamento aconteceu em Montevidéu no fim dos anos 30. Lange, então na casa dos 20 anos, não se conformava com a divulgada inexistência de uma música colonial mineira. Observando a arquitetura das cidades histórica de Minas, inferiu um elo sonoro perdido: "Se a arquitetura eclesiástica foi tão luxuosa, como é possível a inexistência de uma música que preenchesse esses espaços?"
Foi a campo. Entrou em contato com o governo brasileiro, mas não encontrou apoio. Passados sete anos, já nos anos 40, pagou do próprio bolso a primeira das 15 viagens que fez a Minas. Achou em Ouro Preto, Mariana e outras cidades históricas caixas e mais caixas de partituras prestes a serem queimadas por viúvas de netos dos compositores mulatos que trabalharam para as congregações religiosas no século 18.
Lange descobriu o elo. Descortinou um século inteiro de uma tradição dada como perdida. Lá estava a música que vibrava nas igrejas com a mesma pompa mostrada pela arquitetura.
Durante 20 anos, coletou 800 partituras e restaurou 30. Quatro delas só agora são publicadas.
Hoje, aos 82 anos, morando há seis em Caracas, presidente do Instituto Latino-Americano de Musicologia, Lange ainda pesquisa. Descobriu o barroco peruano, o classicismo venezuelano e, no México, uma dúzia de quase-Bachs. Esteve no Brasil em agosto para integrar o Festival de Música Colonial Brasileira e Antiga, que se realiza em Juiz de Fora (MG. Na ocasião, falou à Folha.
Folha - Como foi sua aventura na descoberta da música colonial mineira?
Francisco Curt Lange - Foi terrivelmente sacrificado. Percorri a região nos anos 40, quando não havia ainda estradas. Passei por lugares muito perigosos. Fui com um jipe. Viajei com dois pneus sobressalentes. Se caíssemos num abismo, seria devorado pelo fogo.
Encontrei as partituras em arquivos mais ou menos conservados em casas de família. Nunca nas igrejas, porque os músicos levavam e traziam a sua música. Os compositores não escreviam em partitura, mas em papéis soltos, como as partes de instrumentos. Tinham a partitura na cabeça. Improvisavam.
Recolhi cerca de 800 partituras, todas compradas. Na época, começaram a dizer que havia um alemão que comprava música. Os preços subiram. A mentalidade do mineiro era essa.
Doei todo o arquivo ao Museu da Inconfidência em Ouro Preto.
Folha - O sr. teve apoio do governo?
Lange - Só na época de Juscelino. Mas foi muito duro. Fiz 15 viagens de Montevidéu a Minas por minha própria conta para salvar as poucas coisas que restavam. Se eu não tivesse chegado naquele momento, tudo teria se perdido.
Folha - As novas descobertas feitas depois de sua pesquisa acrescentam algo ao que já se conhecia sobre o assunto?
Lange - Não. As características estão estabelecidas. A música de Minas é um caso muito singular. Os compositores mineiros passaram por cima do Barroco. Identificaram-se com o classicismo, em especial com o germânico. O período produziu mestres.
Folha - Quem são eles?
Lange - José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, Francisco Gomes da Rocha e Inácio Parreira Neves. Tenho restaurado e publicado no mundo inteiro as obras desses compositores.
Folha - Qual o maior deles?
Lange - Emerico. Houve outros grandes. Mas as obras não chegaram até nós. A maior parte foi eliminada pelas viúvas, que se incomodavam com os caixotes de partitura que ficavam em suas casas. Cheguei no último momento.
Folha - Quando?
Lange - Nos anos 40. Já era tarde. Achei 128 arquivos queimados.
Folha - Quantas obras o sr. descobriu de Lobo de Mesquita?
Lange - Entre 40 e 50 obras, mas nem todas são restauráveis.
Folha - Há comparação entre a obra de Emerico e a de compositores europeus da época?
Lange - Ele escreveu num estilo "pangermanista": Viena, Praga, Mannheim, Salzburgo etc. O sul da Alemanha foi sua fonte.
Folha - O sr. descobriu alguma composição profana?
Lange - Só sacra. Essa foi a ocupação de vida daqueles compositores. Fizeram música de câmara só para eles, por prazer. Mas não restaran obras do gênero. Tenho visto coisas como um dueto para violino e flauta. É raro. Não havia exigência institucional.
Folha - E óperas?
Lange - Não achei nenhuma, apesar de terem existido várias casas de ópera em Minas. Ópera foi cultivada, mas com materiais de Portugal, transformados já da literatura musical de Viena. Fiz um levantamento e encontrei uma relação de óperas. Há libretos de óperas que foram compostas por brasileiros. Tenho um de Valadares, que foi governador de Minas em 1868. Escreveu uma ópera baseada nos temas pastoris da época. Vou publicar o libreto agora.
Folha - Qual a contribuição da música colonial mineira?
Lange - Se os mineiros tivessem ido a Viena ou a Munique na época, teriam assombrado o mundo com sua produção. E teriam mudado para a música operística e de câmara.
É pena o governo brasileiro não ter feito nada. Proponho desde os anos 40 a criação de um Instituto Brasileiro de Musicologia. A resposta é a mesma: não há dinheiro. No Brasil, os críticos musicais não sabem música, são literatos ignorantes que nunca se preocuparam em conhecer o esplendor de Minas. O elo perdido só não foi encontrado antes por estupidez.

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