São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Morte: um rascunho

HAROLD BRODKEY

O interesse no futuro é uma das primeiras coisas que começam a morrer quando a gente sabe que tem uma doença incurável
Continuação da pág. 6-4
No século 20, as artes não têm representado a realidade do sexo e do amor tal como são vivenciados na vida real, em tempo real, porém os apresentam como... bem-aventurança socialista, ou o paraíso antes do início do pesadelo, ou algo inexistente (Joyce e Beckett, estes irlandeses cheios de sexo e no entanto assexuados), ou obsessão e vitimização (Freud e Proust), ou idílio animalesco, ou sabe-se lá o que mais. Hemingway era dominado pelo terror sexual, mas tornou-se popularíssimo. A meu ver, quem melhor retratou a assexualidade na arte erudita foi Balanchine, porque soube captar e embelezar fisicamente a raiva, o anelo, as tentativas de fugir da solidão. Para não falar na assexualidade de Eliot –não devemos esquecer que D.H. Lawrence foi expulso da Inglaterra, enquanto Eliot, com toda sua frieza, terminou idolatrado. E talvez com razão. O amor e o sexo, afinal de contas, revelam falta de juízo: veja-se o meu caso.
A insensatez do ato sexual está sempre diante de nossos olhos. O dever cívico, a ambição, até mesmo a liberdade individual a ele se opõem. Tem-se a impressão de que a arte popular é sexualizada, e talvez, de certo modo, ela o seja –ao menos ela indica que o ato existe, e nos faz ver porque a inclusão da sexualidade e da emoção em nossas vidas pode gerar reações horríveis. Porém ela não é sexualizada como o é o canto de Jon Vickers, por exemplo. Vickers causou um constrangimento nas platéias americanas que um Sinatra jamais causou –um constrangimento semelhante ao que Billie Holiday provocava nas boates, por causa da autenticidade do evento sexual-emocional.
O que acontece numa cidade competitiva, entre pessoas que são boas imitadoras, que não passam de estudantes, no fundo (meros macacos esforçados), é que, como esta autenticidade é bem rara, há uma produção em massa do que poderia ser chamado de sexualidade falsificada, nervosa e sensível. Boa parte da cultura nova-iorquina consiste em sexualidade falsificada.

Neste ponto, faço uma observação impertinente: nunca fui aceito como gay por ninguém, nem mesmo por um homem que viveu comigo e se considerava meu amante. Na época, eu não via possibilidade de ter relações civilizadas com mulheres: elas estavam estragadas pelas expectativas que impunham a si próprias, por seus conceitos de feminilidade, sua culpa. E eu não via nenhum papel masculino que pudesse assumir e me parecesse aceitável. Já perto do final de minha experiência homossexual, antes de conhecer Ellen, fui obrigado, de modo humilhante, a encarnar um papel de masculinidade exacerbada, dominadora, odiada, cultuada. Foi então que peguei a doença de um homem que me despertava interesse. Posteriormente ele separou-se de seu amante e veio para Nova York, onde morreu sob os meus cuidados e os de Ellen.
A Aids nunca foi uma preocupação nossa; não era um de meus terrores secretos. Ellen e eu estávamos em Berlim em novembro e dezembro de 1992; de lá fomos para Veneza, e algumas pessoas –todas, na verdade– comentaram que eu estava magro demais. Nem eu nem Ellen ficamos alarmados quando uma mancha escura apareceu na minha face direita. Imaginávamos que fosse efeito de meu regime macrobiótico, ou uma somatização de conflitos de política literária e resquícios de ciúme sexual, muito embora minha natureza sexual tivesse se extinguido, uma espécie de modéstia pública. Eu havia escrito um romance em um ano, um romance que me agradava e me inspirava orgulho, e ocorrera-me que este esforço poderia ter o efeito de matar-me. Estava fazendo pouco exercício, estava magro demais, por vezes ficava trêmulo. E era excessiva a tensão que me causava constatar que minha reputação e o modo como me tratavam variavam muito de um país para o outro –grande artista aqui, bufão ali, escritor importante acolá, impostor, vilão, virtuose, imbecil, herói.
Creio que o futuro desaparecera para mim, transformara-se numa parede mole e frouxa. De início, quando Barry me disse de chofre que eu estava com Aids, eu ainda não sentia a verdade na carne, embora tivesse consciência de que não teria sentido negá-la. Nesta altura, Barry era uma figura totalmente irreal para mim. Era apenas um fio condutor, um pára-raios de equívocos da medicina. Eu ainda não acreditava que ele era um bom médico; só me convenci disso um pouco depois. A estrutura do eu não foi alterada por aquelas palavras; a sensação geral de que meu corpo era meu e fora meu desde sempre não se dissolveu, como viria a acontecer alguns dias depois. Eu não tinha consciência de estar gerando a minha morte.
Ellen afirma que se preparou para enfrentar minha reação; imaginava que eu me tornaria violento, psicologicamente violento, e desejaria morrer de imediato tão logo aceitasse o diagnóstico. E foi o que aconteceu. Mas eu tinha também medo da morte, medo de me calar para sempre. E sentia vergonha diante de Ellen, e raiva dela. Ellen nem sempre acredita em meu amor por ela –uma de suas características menos atraentes é sua tendência a cobrar provas de afeto como uma frequência nada razoável. E o que é o amor? A minha medida de meu amor é que eu seria capaz de morrer para poupá-la. A dela é nós ficarmos juntos mais tempo.
Durante as duas semanas que se seguiram, o mundo e todas as outras questões desapareceram. Éramos duas pessoas sozinhas num quarto de hospital. Não permitíamos visitas, e os internos não se interessavam pelo meu caso. (Barry explicou-me que a Aids atualmente é pouco interessante para os médicos, e a minha infecção oportunista não tinha nada de exótica: era a mais comum de todas.) Passamos duas semanas quase em silêncio, eu cada vez mais impotente, enroscando a sonda do soro, perdendo o tubo de oxigênio.
Como comecei a dizer acima, uma das primeiras coisas que ficam distorcidas e começam a morrer quando a gente recebe a notícia de que está com uma doença incurável é o interesse no futuro. É extraordinário como os momentos perdem sua dimensão –não perdem o valor, porém se tornam achatados, bem mais vazios. O tempo nos deixa confusos; torna-se desinteressante, prosaico, talvez. Mas Ellen ficava magoada de ver que para mim pouca diferença fazia viver ou morrer. Quanto a mim, sentia-me aliviado de constatar que podia manifestar minha covardia em relação à morte vivendo para ela.
Ellen voltou para o hospital depois de passar quatro horas horríveis sozinha em nosso apartamento, à noite, torturada por pesadelos sem sequer ter adormecido. Chegou tão logo o dia clareou, e mandou que instalassem no meu quarto uma cama para ela.
Disse-me então, sem me encarar: "Quero passar mais tempo com você". Respondi, já em meu mundo achatado: "Você está maluca. Viver não tem mais muita graça. Agora. E você sabe disso". Suspirei. "Mas se é isso que você quer..." "É isso que eu quero", Ellen afirmou.

Otimismo. Esperança. Nós, americanos, gostamos de propaganda; nossa cultura exige dela que represente não o que funciona nem o que vale a pena preservar, e sim aquilo pelo qual vale a pena trabalhar. Isto substitui a tradição e, lá a seu modo neurótico, é vivificante, uma forma de liberdade. É também uma forma de loucura, um desejo ávido, e um tanto irreal, de que o futuro substitua o sentimento histórico.
Mas é nisto que se fundamentam os Estados Unidos: nesta visão voltada para o futuro. Nós vamos criar uma nação, com jardins, piscinas e cirurgias corretivas. Basta comparar os discursos de Franklin Roosevelt com os de Churchill que isto fica claro. A diferença salta aos olhos nos ritmos, na imagística, no conteúdo. Roosevelt propôs as quatro liberdades, enquanto Churchull ofereceu sangue, trabalho, suor e lágrimas. (Ou então comparem-se Mark Twain com P.G. Woodehouse. Ou Groucho Marx com Evelyn Waugh).
Nos Estados Unidos, o sentimento do trágico é tão diluído pelos devaneios que quase chega a cair no ridículo. Nós, americanos, criamos símbolos a torto e a direito, como forma de publicidade, como irrealidade ativa. Churchill governava uma entidade perfeitamente distinta, uma nação bem definida, constituída por sua história. Os Estados Unidos se definem pelo que a nação vai fazer em seguida: Roosevelt, Lincoln, Kennedy e outros foram obrigados a definir a nação para nós vez após vez.
Compara-se o charuto de Churchill com a piteira de Roosevelt. Churchill bebia abertamente, mas a cadeira de rodas de Roosevelt quase nunca era fotografada. A Declaração de Independência, a Constituição e a Carta de Direitos são textos que de certo modo lembram anúncios, que afirmam garantias semelhantes às que vemos nos comerciais. As bases da mentalidade da classe média americana nada têm a ver com o sentimento de classe europeu, mas têm tudo a ver com um empreendimento utópico.
Nos Estados Unidos, o que corresponde (só que as diferenças são imensas) à aristocracia européia é um instável mercado de consumidores ricos e arrogantes até não poder mais, fácil de intimidar e no entanto difícil de conter. Aqui, como a cultura é muito instável (e recente), o que predomina é a idéia de como-fazer: como ser feliz ou gozar de relativo conforto em circunstâncias confortáveis, como enfrentar pessoas de nível mais elevado que gozam de status e, por exemplo, gostam de ópera. Como fazer isto ou aquilo no futuro próximo, um futuro melhor. Um típico devaneio americano, como em Twain (ou em Hemingway), diz respeito a como reconstruir depois da inundação, como ficar melhor do que se era antes, como passar a perna no adversário, que pode ser inclusive, por fim, a morte.
Pois bem, como é possível ser otimista com relação ao momento presente? Sem esperanças para o futuro?

Herdei de meu pai verdadeiro, de minha mãe verdadeira e de meu avô materno uma força física considerável. Uma vez, aos sete anos de idade, quase morri, por conta de uma reação alérgica a um anestésico, um desses derivados do éter que se usavam na época. (Minha mãe, que morrera quando eu tinha dois anos, apareceu-me numa alucinação, o que achei insuportável.) Entrei em convulsões e, de acordo com as máquinas, morri: meu coração parou, minha respiração cessou. Um grupo de médicos e enfermeiras jovens, e mais uma enfermeira velha, me salvaram. Lembro-me de seus esforços frenéticos, até mesmo do odor de nervosismo que deles se desprendia. Cheguei a ficar mais ou menos legalmente morto, mas naquele dia, à noite, consegui dar alguns passos no quarto do hospital. Meu pai adotivo passou algum tempo me chamando de Rasputin: "É impossível matar você."
Doente ou saudável, durante toda a minha vida jamais me faltaram forças para fazer o que eu queria fazer. Esta era a primeira vez. Aquela força estava extinta. Eu sabia como meus pais haviam se sentido quando a força deles lhes faltou. É uma coisa muitíssimo irritante. Vêem-me à mente frases melodramáticas: "Me matem e acabem com isso logo de uma vez". Todos os dois disseram isso. Eu também disse, uma ou duas vezes, porém com mais ironia. Após concentrar minhas forças, com um esforço de quem dá um salto –cheio de raiva, chafurdando na lama eu dizia: "Essa porra dessa cama de hospital é tão desconfortável que vocês bem que podiam me matar e acabar com isso logo de uma vez".
Mentalmente eu tinha consciência da ameaça da morte como uma certeza terrível de um fato sensorial, ou físico, mas só em palavras. Ou seja, a mente via a coisa à distância, débil, e via meu estado como uma piada besta, como uma manchete: "Harold ameaçado de morrer", ou "Harold dessa vez não escapa", ou "H.R. Brodkey vê o que é bom para a tosse". Com um subtítulo: "É um saco, afirma o ex-atleta amador". E mais os títulos das seções: "As estatísticas são pessimistas" e "Pneumonia galopante derruba colaborador da 'New Yorker' ".
Durante a maior parte de minha infância, meus pais estavam doentes, de modo que percebi a diferença implacável entre as pessoas que viviam no mundo da saúde e as que habitavam o da doença, sob o efeito de remédios que derrubavam ou debilitavam, de operações, da radioterapia.

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