São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Morte: um rascunho

HAROLD BRODKEY

Nossa vida normal reproduzia-se, de modo truncado, no quarto de hospital: flores, frutas, uma certa reclusão, mesmo às portas da morte
Eu já estava preparado para a solidão, a irritabilidade, até mesmo a loucura que faz parte da experiência da doença. Eu já a vivenciara pessoalmente, aos sete anos, e também anos depois, quando, aos 31 anos, peguei hepatite e me senti muito mal, e a hepatite foi diagnosticada como câncer no fígado em estado avançado, e fui informado de que só me restavam uns poucos meses de vida.
Porém não experimentei nenhuma explosão emocional, de raiva ou de dor, como as de meu pai adotivo, Joe Brodkey. Dei-me conta de que eu estava sufocando, tal como meu pai verdadeiro, Max Weintrub: ele sofria de um mal que, segundo me disseram, era uma espécie de asma senil, a asma foi estrangulando seu coração, até que o coração não aguentou mais. Mas ele gritava e xingava, tal como minha mãe adotiva, Doris, que tinha câncer e dizia a todos a sua volta que eles lhe "davam nos nervos".
Fora a sufocação, porém, nada disso acontecia comigo. Eu não sentia quase nada, em termos de comentário. Era um alívio sofrer de uma doença desmascarada, ver a Morte exposta abertamente. Era um alívio livrar-me das chateações de uma grandeza suposta, das negações e agressões, de meu próprio sentimento das coisas, da realidade do mundo, da realidade literária –de tudo. Nos últimos anos, a repulsa mental e física que eu sentia por... –ah, Lish, Mehta, Lehmann-Haupt, Hilton Kramer, Barbara Epstein e Bob Silvers– crescera a tal ponto que disfarçá-la e escondê-la era como um tumor, que secava sempre que eu me embrenhava pelo interior ou ia à Europa. As deficiências das obras que eles produziam e das obras péssimas que promoviam, a alternância entre a repulsa e a piedade que despertavam em mim, eram coisas que eu não suportava mais. Era mesmo um alívio estar fora do alcance dessas pessoas, ver-me numa outra esfera de experiência, mesmo que fosse terminal. Aliviava-me constatar que o futuro não era mais da minha responsabilidade, e escapar dos joguinhos de superioridade e inferioridade.

Uma expressão americana: "essa merda de intimidade". A expressão pode traduzir tanto impaciência quanto o que há de sexual na relação, dependendo do tom de voz e da fisionomia do falante, de ele estar ou não sorrindo no momento de pronunciá-la. Em Ellen, que espelhava com uma espécie de ternura misericordiosa meus estados d'alma e deste modo me reconstituía as forças, estão em jogo tanto a consciência da ancestralidade típica dos judeus quanto o sentimento da razão e da fuga que caracteriza os rebeldes.
Nesse apertado quarto de hospital, Ellen recebeu minhas duas mães, seus fantasmas ou espíritos, e a linhagem dos pais, quatro milênios de judeus antipáticos, presunçosos, rígidos, e mais todas as figuras literárias mortas e moribundas, e mais todos os personagens que morrem em meus livros favoritos –o príncipe Andrei, Hadji Murad, a avó do narrador de Proust– e mais todas as viúvas, desde Andrômaca e Hécuba. E tinha também de conviver com as enfermeiras e assistentes, os internos e residentes, e mais Barry. Nunca vi tanta determinação, nem uma sedução tão sutil: seria impossível relatar aqui as promessas silenciosas, as maravilhas ocultas que ela lhes prometeu, a todos, inclusive aos fantasmas. E enquanto isso a morte ficava a meu lado, revolvendo a lama que recusava-se a ficar no fundo daquela crise medonha de pneumonia.
Nessa época, houve períodos em que vivi graças à força de vontade de Ellen, usufruindo de sua agilidade e sutileza. Era assim enquanto ela estava acordada, e foi assim enquanto sua força durou.
Nossa vida normal, nossa vida cotidiana de casal, reproduzia-se, de modo truncado, no quarto de hospital: flores, frutas, um jornal, pequenas discussões, uma certa reclusão, o hábito de julgar –as coisas de sempre, mesmo às portas da morte, mesmo na presença da morte.
Mas estávamos num quarto de hospital; eu estava morrendo e não tinha muitas emoções privadas. Neste casal, o marido vivia totalmente dopado com prednisona, um esteróide que protege o paciente da dor física e da depressão criando uma estranha espécie de pré-loucura. Eu sentia uma limpidez de humor que tinha algo de sinistro, um senso de humor nauseado; era um estado estranho. E a mulher do casal estava excessivamente carinhosa, com aquela doçura que costumamos reservar aos doentes, e também apavorada, e cheia de uma esperança teimosa –bem diferente de seu estado normal. Ela temia o que poderia haver de melancólico nesta paródia caricatural e bem-intencionada de nossa vida anterior. Os meus momentos de sofrimento eram contagiosos de imediato –afinal, o quarto era muito pequeno.
Continua à pág. 6-6

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