São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Morte: um rascunho

HAROLD BRODKEY

Um filhote de raposa, um passarinho nervoso, um saco de sangue contaminado, uma figura esquelética –é isso, a minha consciência.
Continuação da pág. 6-5
Ficávamos de mãos dadas, e então eu dizia: "Que merda", ou "Isso é uma merda", e chorávamos um pouco. Em matéria de poesia, isto parecia suficiente. Eu dizia: "Mas e daí?" ou então "Não gosto de sentimentalismo. Vamos parar com isso".
Eram igualmente invasivos os momentos de ternura, quando Ellen me dava banho e me virava na cama –ela, que pesa apenas 44 quilos– ou mudava a roupa de cama. Ou quando me ajudava a ir ao banheiro. Eu tinha que me apoiar nela e no suporte do soro. Para mim era importante que ela não visse meu excremento. Minha cabeça pendia. Uma vez –mas apenas uma vez– minhas pernas não aguentaram. Eu não tinha forças, mas é bem verdade que a força de vontade consegue muita coisa. Nossas conversas na cama e no banheiro tinham que evitar os sentimentos; faltavam-me forças para ter sentimentos. Eu exibia minha resistência para Ellen. Falava em trabalho, em dinheiro, nas informações que eu conseguira arrancar do médico.
Mas era ela que tinha esperanças. Era ela que tinha o sentimento do dramático. Foi ela que –talvez não sendo inteiramente sincera– exclamou, ao ficar sabendo que não estava soropositiva: "Ah, não gostei. Eu também quero".
Um comentário emocional. Uma mentirinha conjugal, uma pequena manipulação conjugal. Porém verdadeira até certo ponto, na medida em que, se eu resolvesse me matar, ela continuava decidida, dizia ela, a matar-se também.
Ela queria morrer da mesma coisa que eu.
"Pára com essa bobagem, meu bem. Não é isso que eu quero. Corta essa, está bem?"

Os hospitais estão em mau estado, em franca decadência. A crise daquela conspiração de classe média que foi a cultura urbana ocidental se manifesta nos hospitais como uma decadência visível, drástica, total. Tudo é improvisado e precário, até mesmo a limpeza e a administração do tratamento. Mas talvez por conta da bondade obstinada de algumas pessoas, da determinação de ser bom, ou do vício de priorizar a emergência, ou porque o significado de salvar a vida de um ser humano fala à alma ou afirma a importância no universo da pessoa que se dedica a este tipo de trabalho, os melhores enfermeiros e assistentes de enfermeiros aparecem para cuidar de nós quando estamos morrendo.
Pelo menos foi deste modo que fui tratado. Principalmente quando Ellen estava presente. Os remédios vinham na hora certa, o soro era corretamente regulado –e a atenção que me davam, nos menores detalhes, continha um estímulo respeitoso ao corpo e alma, ainda que ambos estivessem nas últimas, um tipo curioso de impulso, tipicamente americano, que visa não a glória, mas sim o propósito de utilizar as tecnologias e técnicas de tratamento, de aproveitá-las. Exige-se do paciente que ele se esforce para voltar para casa, para retomar seu tênis, para reafirmar seu tributo à vida.
Eu já obrigara Barry a confessar que ali não havia milagres, não havia curas. Até hoje ninguém se curou de Aids. Os limites da sobrevivência variam, mas de modo geral fala-se numa expectativa de vida de dois a cinco anos. Se você tiver sorte e receber um bom tratamento, você consegue passar uma boa parte desse tempo sentindo-se bastante bem. Como prêmio, como meta, isto não condiz muito com o espírito americano. Não tem nada de utópico, embora Barry tentasse me passar esta impressão com uma generosidade surpreendente; ele levantava a voz e sorria, seus olhos brilhavam; ele parecia um vendedor empolgado, tentando me vender a vida.
Mas isso não é vida. Por algum tempo toquei em frente, com meu fôlego limitado, no meu ritmo contado, obedecendo à musa da sobrevivência imediata. Não conseguia respirar sem oxigênio, e meu organismo sofria reações dilacerantes às quantidades cavalares de remédios que gotejavam nas minhas veias, que eram enfiados em mim ou que eu engolia –só de pílulas eram 15 antes de dormir. Eu me sentia sufocado a cada instante que passava. Mas a prednisona de certo modo me confortava. O mais estranho é que perdi totalmente o sentimento de presença, de poesia e estilo, de idéia. Desapareceu por completo, sem deixar o menor vestígio.
Restava-me apenas uma vaga noção da força perdida que seria necessária para criar ou apreender uma metáfora, do quanto tais coisas estavam distantes de mim. Tudo era sufocação, a sentença de morte, a democracia corrosiva e as ondas químicas de mal-estar e calor, de febre inebriante, a fermentação lenta porém persistente da doença dentro de mim. Fora de mim só existiam a respiração de Ellen, a cor das paredes na penumbra, os barulhos do hospital, a televisão em seu suporte fixo, a passagem incessante dos momentos.
E nada era semente de linguagem, nada encerrava nenhuma iluminação, nada insinuava significado, nada que fosse além da respiração. Atento apenas para o respirar, talvez agora, às portas da morte, eu estivesse vivo de uma forma verdadeira e completa, humanamente vivo, pela primeira vez após dez ou 15 anos de trabalho incessante. Acordado na cama, eu me sentia quase alegre. Alguma vez, na infância, você brincou sozinho dentro de uma caixa grande de papelão, uma embalagem de geladeira? Alguma vez trabalhou sozinho num cômodo amplo? Ou à noite, quando todo mundo estava dormindo? Tudo que digo agora aplica-se aos sentimentos que se tem dentro de uma caixa assim, a caixa em que me encontro. Ninguém jamais saberá o poder de sentimento que eu projeto dentro de minha embalagem.
Em silêncio, eu achava graça da atenção dos médicos, dos horrores da doença e da morte, uma morte grandiosa. Como achar graça disso? Bem, o que você pode sentir quando exigem que você lute contra uma pneumonia potencialmente fatal se você já foi condenado à morte de antemão? Você é carne entregue à morte. Não há como cooperar. Você é um soldado raso, bucha de canhão. Diversas funções de seu organismo estão rotineiramente ameaçadas. Cheio de tédio, você resiste. Você vive na alternância das marés dos medicamentos. Você se esforça por seguir em frente como uma pessoa no mundo. Sorri para Barry. Sorri para Ellen. Fica absolutamente imóvel na cama. Mas há o grotesco do paciente, do louco, da carne elétrica; rompeu-se o vínculo com o mundo cotidiano, mas não de todo. E há também o lado cômico da coisa: todas as pragas que já lançaram sobre você agora se realizaram. O que querem que eu faça? Que eu não ache graça?
E Barry queria me divertir –isto é, queria me sacudir, infundir-me energia e ímpeto. Era como se ele nos desse uma carambola e nós, como bolhas de bilhar, ficássemos mentalmente a zanzar de um lado para o outro naquele quarto estreito, animados. Por vezes ele estava exausto, talvez deprimido, porém escondia estes sentimentos com fervor, com sua rotina de médico, sempre atento. Estava trabalhando com uma doença ainda não muito bem estudada, valendo-se da experiência clínica e da analogia. Eu sentia gratidão ao ver que ele se importava comigo.
Seu respeito pela minha vida chegava às raias da idiotice. Barry não tinha como sair vencedor. No entanto, ele continuava a exultar, literalmente, e me prescrevia remédios, e analisava meu caso, e me ganhava um mês de vida aqui, talvez dois anos ali. Barry seguia a toda velocidade numa linha reta, a linha da medicina, sem levar muito a sério a inevitabilidade da derrota. Lutava, exibia-se, e eu o aplaudia da melhor maneira possível. Eu não tinha mais ânimo, porém oferecia a Barry o que ainda me restava de mais semelhante ao ânimo. Assumi a rudeza da luta: era assim que manifestava minha lealdade ao mundo normal.

Vou dar um salto no tempo –para sairmos do hospital por um momento– e inserir aqui uma anotação de meu diário, feita dois meses depois:
Na última consulta, Barry me animou tanto que ontem, quando chegamos no interior, onde está mais fresco –havia um vento gostoso, e as árvores sisudas ensaiavam gestos bem-humorados, o acônico estava em flor, com panículos roxos muito altos junto ao muro de pedra– enlouqueci completamente, carreguei coisas, subi e desci escadas correndo, até entrar em colapso –nada de sério, porém um esgotamento total– por 18 horas. Foi um susto. Mas continuei me sentindo alegre e aliviado.

Eu não conseguia dormir direito. A prednisona só me permitia cochilar, uma espécie de inconsciência superficial. Eu levo o sono a sério. Antigamente, quando eu me sentia doente, ou apenas triste, bastava dormir que o mal passava.
Agora, quando Ellen dormia, eu me preparava para –por assim dizer– enfrentar meus próprios sentimentos. Por volta do amanhecer, eu cochilava. A toda hora acordava numa precária imobilidade horizontal, protegendo com minha postura os pulmões e o coração, tal como estava fazendo antes de adormecer. Despertava cônscio de que havia sonhado, e hesitava por uma fração de segundo até convencer-me de que não conseguiria lembrar-me de meus sonhos, que eu sonhara com a morte, e que minha consciência desperta recusava-se a reproduzi-los para mim.

Ninguém sabe explicar o que é ser marcado. As explicações comuns, tradicionais, têm a ver com a idéia de pecado –os pecados de nossos pais, os nossos próprios pecados. Mas ser americano é ser meio nietzscheano: é estar além do pecado, mesmo que ainda acreditemos um pouco na idéia de pecado. Todos nós, por assim dizer, temos que sofrer nossas vidas e nossas mortes nos termos do direito civil.
Uma parte de nossa personalidade consiste em nosso trabalho: ele nos proporciona lampejos de significado. A consciência de nossos próprios crimes também pode nos manter vivos. Ou então é a indignação moral que nos salva. Escancaram-se portas de repente, como numa farsa, e uma espécie de cabeça de Medusa aparece nos corredores da doença como um pêndulo, nos petrificando. A toda hora eu tinha vontade de chorar como Doris Brodkey, ou refugiar-me na raiva como Joe Brodkey. Eu queria uma morte herdada. Só que eu havia perdido o passado. Esta morte parecia ser inteiramente minha, minha e de Ellen, só nossa.
A morte não fala macio, não pisa manso. Está logo no corredor. A fraqueza não vem e passa, como uma onda. Ela tem um ar estagnado, que me invade, e a inundação toma toda a minha alma. O invólucro que continha minha juventude, minha força, minha sorte, está vazio, e vibra um pouco. Um filhote de raposa, um passarinho nervoso na sombra, um saco de sangue contaminado, uma figura rígida e esquelética, supina, imóvel –é isso, a minha consciência. É como dar de comer a um passarinho para que nossos desejos sussurrados sejam levados a sério, para não sermos alvo de piedade predatória. Barry e Ellen vão me salvar por algum tempo.
Conhecem o mito de Brodkey, o Irresistível? Não é fácil falar sobre isso. O Garanhão dos Seus Sonhos. Que piada. Era uma questão de boatos –uma reputação, um componente da aura flutuante, do aroma pungente das fofocas nova-iorquinas. Eu me esforçava, como amador aplicado, e não sem prazer e curiosidade, mas não estava à altura. Meus limites sexuais eram fisicamente bem nítidos. Não consegui ser um herói dos anos 60. Nem dos 70. Eu não estava à altura do papel. Nunca tive nada a ver com a sofisticação e com as atividades que Robert Mapplethorpe retratava e divulgava. Nunca fui um Casanova do nível de Norman Mailer. Independentemente do que fiz, dos eventos reais que alimentaram esta imagem –e do humor e da vaidade que manifestei– sem dúvida o mito baseava-se acima de tudo em declarações e fofocas de terceiros. Vivi, de fato; só que minha vida não foi assim.
Tennessee Williams, que estudou na mesma escola secundária que eu, muitos anos antes, e foi aluno de alguns dos professores que ainda peguei, abordou o tema do homem irresistível em termos de prostitutos e bonitões que surgem de passagem na cidade, sempre aos farrapos e humilhados. Um imitador, o dramaturgo William Inge, tratou o tema de modo mais direto, mais jornalístico, na peça (que virou filme) "Picnic". E atores como Paul Newman, Marlon Brando e William Holden por algum tempo encarnaram esta idéia em diversos papéis, em filmes de Hollywood, levando tiros, caindo dentro de piscinas, etc.

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