São Paulo, segunda-feira, 14 de novembro de 1994
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Política salarial e inflação

JOSÉ MÁRCIO CAMARGO

A existência de uma política salarial tem sido apontada por muitos analistas como um dos principais problemas para a estabilidade de preços. Segundo estes analistas, o plano de estabilização corre sérios riscos devido à obrigatoriedade da reposição da taxa de inflação entre julho de 1994 e a data-base da categoria profissional.
O problema seria a manutenção da indexação dos salários à inflação passada, o que faz com que a inflação futura seja, pelo menos em parte, determinada pela inflação passada.
O raciocínio é simples. Um aumento de salários nominais aumenta os custos que, se diretamente repassado aos preços dos produtos, tende a gerar aumentos de preços.
Como a política salarial estipula que todos os trabalhadores devem ter reajustes anuais, nas datas-base, correspondentes a pelo menos a inflação entre esta data e o mês de julho de 1994, a cada mês um grupo de trabalhadores tem reajustes repondo a inflação ocorrida entre julho e este mês.
Se este aumento de custos for repassado aos preços, uma parte importante da inflação do presente corresponde à inflação que aconteceu no passado. A isto os economistas chamam de inércia inflacionária.
Em lugar de depender da taxa de inflação passada, o ideal, para evitar esta inércia, seria que as variações dos salários dependessem dos movimentos da produtividade do trabalho. Se não houvesse política salarial, os reajustes de salários seriam determinados por negociações, coletivas e/ou individuais, entre trabalhadores e empresas, o que, segundo estes analistas, faria com que estes reajustes acabassem se pautando por ganhos de produtividade e não pela inflação passada.
Porém, esta afirmativa somente faz sentido em economias estabilizadas, nas quais as perdas de salários reais decorrentes da inflação sejam muito pequenas. Em economias com taxas de inflação de 40% a 50% ao ano e com demanda fortemente aquecida, como caso do Brasil no momento, as perdas decorrentes da inflação são de tal ordem que os reajustes ligados à reposição dos aumentos de preços tendem sempre a dominar as variações de produtividade do trabalho.
É exatamente por esta razão que, em uma parte relativamente grande das empresas brasileiras, os reajustes salariais têm suplantado os níveis estipulados pela lei salarial, e as antecipações dos reajustes têm sido frequentes. Isto decorre do grande aumento de demanda e da necessidade que têm hoje as empresas de evitar problemas com seus trabalhadores devido à insatisfação com as perdas de salários reais devido aos relativamente elevados índices de inflação.
Nas negociações dos contratos coletivos, a concessão de reajustes nas datas-base, ou antes delas, acima dos índices estipulados pela lei salarial tem sido objeto de discussão entre trabalhadores e empresas.
Estas discussões têm sido duras, principalmente para os sindicatos mais fortes e mais mobilizados, devido à atitude agressiva adotada pelo governo contra as concessões de reajustes acima do estritamente estipulado em lei.
Da mesma forma, a Justiça do Trabalho tem cumprido um papel importante no sentido de evitar que reajustes maiores que os mandatórios em lei sejam concedidos, quando as empresas pedem a abertura de dissídio coletivo.
Quanto às negociações individuais, o governo pouco tem a fazer, na medida em que estas são decididas isoladamente por empresas e trabalhadores e/ou sindicatos, não sendo passíveis de intervenção governamental. Também neste nível, as informações disponíveis sugerem que as concessões têm sido muito superiores às que estão na lei salarial.
Estas evidências indicam que a existência da lei salarial não tem sido uma restrição a que empresas e trabalhadores consigam chegar a acordos acima do que foi por ela estipulado, exceto quando o governo e a Justiça do Trabalho interferem na negociação.
Neste sentido, dificilmente poderíamos dizer que o efeito da política salarial no momento é o de gerar uma pressão inflacionária, ou evitar a queda da inflação, pois ela não parece estar restringindo os reajustes.
Porém, como a política salarial representa um marco legal claro seguido pela Justiça do Trabalho, ela coloca também um marco para empresas e trabalhadores no processo de negociação. No caso limite, de conflito explícito e dissídio coletivo, a Justiça acaba estipulando o que a lei manda.
Desta forma, se alguma função tem tido a política salarial é no sentido de evitar um processo ainda mais rápido de reindexação salarial do que já vem ocorrendo e, portanto, reduzir a pressão inflacionária.
O ponto importante a ser destacado é que a indexação é um subproduto da inflação, e não o oposto. A ausência de política salarial em um momento de instabilidade e incertezas quanto à inflação futura como o atual, somente iria aumentar a tendência à indexação informal dos salários. O fim da indexação não será um resultado da inexistência de lei, mas sim do fim da inflação.
Como a tendência da inflação brasileira hoje é de crescimento, a ausência de uma política salarial, neste momento, apenas iria colocar mais combustível na fogueira da indexação (informal) e da inflação. Principalmente com as atuais instituições que regulam as relações entre trabalhadores e empresas no Brasil e se as negociações se tornassem realmente livres, entre trabalhadores e empresas, sem a interferência da Justiça do Trabalho.
Sem algumas reformas fundamentais nestas instituições, a política salarial atual pode ser o sistema menos ruim para a estabilização. No futuro, se as condições mudarem, estas conclusões também poderão mudar. Porém, no futuro, já não teremos mais política salarial.

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