São Paulo, segunda-feira, 14 de novembro de 1994
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'Rua da Amargura' traz a festa e as trevas

NELSON DE SÁ
ENVIADO ESPECIAL A BELO HORIZONTE

O encontro com a festa é a revelação do teatro brasileiro na aproximação do milênio. A festa da religião, a festa que era o entorno e o próprio teatro da Colônia, no início do Brasil, a festa dos jesuítas. Foi ela, a festa barroca, que deu o impacto de "Auto da Paixão, 9 Cânticos de Amor e Morte", de Romero de Andrade Lima; de todo Shakespeare recente, inclusive o "Romeu e Julieta", dirigido por Gabriel Villela, com o grupo Galpão.
É ela, a festa, que dá o impacto agora de "A Rua da Amargura, 14 Passos Lacrimosos sobre a Vida de Jesus". Em cartaz em Belo Horizonte, a montagem já passou pelo Rio de Janeiro e estréia em São Paulo no dia 6 de janeiro, no teatro Sesc Anchieta.
Em duas partes, "A Rua da Amargura" abre com o que é, mais propriamente, a festa. Doze celebradores mostram os primeiros momentos da vida de Jesus Cristo, menos como atores, mais como cantores, como instrumentistas populares, à moda dos indígenas nas festas jesuítas, com violão, percussão; mais como coro, à moda das doze "pastorinhas" de "Auto da Paixão". Tocam músicas populares, algumas delas religiosas, outras até comerciais, as mais recentes.
A segunda parte é com Jesus adulto. A festa se junta ao texto de Eduardo Garrido e confunde popular com o pior populismo. Escrito em 1902, é melodrama de baixa qualidade artística e de ainda mais baixa qualidade moral. Um ou outro elemento da festa mantém a apresentação em pé. Mas ela vai se firmando rancorosa, preconceituosa, até voltar do coro, perto do fim.
O texto não ajuda, mas o personagem é maior e permite a Eduardo Moreira uma atuação superior. A compaixão do Jesus feito por ele se sobrepõe aos momentos equivocados, quase fazendo esquecer as palavras.
Sobre músicas de faroeste italiano, a Paixão de Cristo com o ator chega a se opor ao texto, tal seu arrebatamento. Não há nada de melodramático, de popularesco, em seu Cristo. É um Cristo, não de circo, mas do teatro da Colônia. O teatro piedoso, alegre, dos jesuítas. Não à toa, aliás, para um ator de educação toda ela inaciana –como é o caso de Eduardo Moreira, segundo se informa.

Era até inevitável, com a volta no tempo, com a busca de um teatro do Brasil antigo, com a aproximação da religião. O movimento, já de alguns anos no teatro, envolvendo elencos e diretores diversos, não tinha como escapar de um fato assim, tão presente e repetido na história do Brasil –em particular, na história do teatro do Brasil. Estava lá, como que esperando, no texto populista de 1902, o anti-semitismo.
O que impressiona mais é a facilidade com que se recebem, no palco e sobretudo na platéia, as palavras de "Amargura". Como num auto-de-fé, não por coincidência, um ritual cênico, a insensatez é justificada, como que sublimada, pelos ritos.
Começa com os estereótipos judaicos, como na barba e na conversa sobre obter a condenação de Jesus Cristo "à custa de algum dinheiro". À frente, mais dinheiro, ao ajustar-se com Judas o "preço" de Jesus; sempre comicamente, fecham o negócio por "trinta dinheiros de prata", sob risos da platéia. É o clichê do usurário, sempre o mais fácil reforço ao rancor populista.
Mais à frente, generaliza-se o alvo. Pilatos fala em "povo assassino", deixando claro que é o povo dos "hebreus"; que são os "judeus". E chega Maria Madalena, que é a protagonista, na peça. É dela uma primeira maldição. "Povo sem alma, que o mundo inteiro te declare guerra." Na cena do Calvário, uma outra mulher surge e amplia o ataque ao "povo insensato".
O próprio Cristo, da cruz, fala aos seus: "Chorai a morte de um povo que morre com a minha morte." A maldição final sai da boca, outra vez, de Maria Madalena, já morto o Cristo. Não é sequer de povo que ela fala. "Raça infame. Maldita seja." O público, na arquibancada, chora, triste por Cristo, mas já pronto e hostil.
Está certo, certíssimo o autor de "Angels in America". É preciso estudar teologia. Antes de mais nada. Antes de errar.

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