São Paulo, segunda-feira, 14 de novembro de 1994
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Jazz perde voz e língua afiada de Carmen McRae

CARLOS CALADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Com a morte de Carmen McRae, aos 74 anos, na última quinta-feira, o jazz perdeu uma de suas cantoras mais originais. E uma de suas línguas mais afiadas. Há nove anos, um gaiato jornalista brasileiro cometeu a gafe de perguntar se ela se considerava uma "segunda Ella Fitzgerald". A resposta foi curta e fina: "Sou a primeira Carmen McRae".
Não era exatamente uma frase de efeito. Influenciada de início por Billie Holiday, que conheceu em 1937 depois de vencer um concurso para amadores no mitológico Apollo Theatre, em Nova York, Carmen soube logo firmar sua personalidade musical. Sem jamais precisar imitar ninguém.
Sua escola foi a mesma de outros grandes cantores e músicos de jazz: os shows em "night clubs" e as "jam sessions" de fim de noite. Durante os anos 40, fez vocais para as "big bands" de Benny Carter, Count Basie e Mercer Ellington, com quem gravou seus primeiros discos. Nessa época ainda usava o sobrenome do marido, o baterista Kenny Clarke, um dos criadores do "bebop".
O sucesso só veio nos anos 50, quando seu estilo pessoal começou a chamar a atenção da crítica. Dona de uma voz potente e de timbre metálico, com uma dicção precisa que realça as letras das canções, seu know-how de pianista contribuiu para a riqueza harmônica de seus improvisos.
Exemplos perfeitos de todos esses recursos musicais estão no CD "Carmen Sings Monk" (Novus/ BMG, 1990). Verdadeira obra-prima, traz as originais versões da cantora para 13 composições do genial Thelonius Monk. Uma explosiva reunião de gigantes.
Aliás, gigantes em vários instrumentos não faltam aos melhores discos de Carmen. O trompetista Dizzy Gillespie (em "At the Great American Music Hall", selo Blue Note), o guitarrista Joe Pass (em "The Great American Songbook", Atlantic/Warner) e os pianistas George Shearing ("Two for the Road", Concord Jazz) e Shirley Horn ("Sarah - Dedicated to You", Novus/BMG) são apenas alguns deles.
Exigente ao extremo em termos musicais, acabou construindo uma imagem de autoritária, arrogante e antipática. Uma fama compreensível, para quem não aguentava o show terminar antes de acusar um erro, mesmo pequeno, de alguns de seus músicos: desancava o infeliz na frente do público.
Já a música brasileira não pode reclamar dessa aparente antipatia. Depois de ser presenteada pela cantora Lena Horne com um disco de Dorival Caymmi, Carmen se apaixonou pela MPB. Era amiga de Leny Andrade e fã de Djavan, compositor que passou a integrar seu repertório. "Os brasileiros são loucos, mas eu os amo", dizia.
Desbocada, às vezes até de modo agressivo, Carmen não tinha receio de criticar modismos do mercado. Ou mesmo chamar de impostores cantores pop que tentam posar de jazzistas, como Harry Connick e Anita Baker. "Não há um meio-termo. É jazz ou não é", alfinetava.
"Um cantor de jazz é como um músico de jazz. Tem tudo a ver com improviso. É alguma coisa que você tem no seu coração", disse ela em sua última entrevista à revista norte-americana "Down Beat", em junho de 1991, quando seu estado de saúde já a forçava a pensar em desistir da carreira.
Naquele mesmo ano, escalada para o Free Jazz Festival, ela foi substituída às pressas pelo trompetista Wynton Marsalis, por causa de uma crise de asma. Mas essa troca, todos sabiam, foi só para remendar o programa. Uma Carmen McRae não tem substituto.

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