São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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O tom da música contemporânea

LORENZO MAMMÌ
ESPECIAL PARA A FOLHA

A revista norte-americana "Perspectives of New Music" é uma das mais antigas e importantes no campo da música contemporânea. Acaba de lançar uma coletânea de ensaios, "Perspectives on musical aesthetics" (edição de J. Rahn, Norton, Nova York, 1994). Até então a revista tinha publicado apenas uma outra, "Perspectives on contemporary music theory", em 1972.
O título da nova coletânea reflete uma progressiva mudança de eixo nesses 30 anos de existência da publicação, de uma abordagem analítica e técnica muito acentuada, típica dos primeiros volumes, a um interesse mais amplo em questões gerais de estética, literatura e filosofia. Entre os 27 textos, escolhidos entre aqueles que apareceram na revista nos últimos 12 anos, está um trabalho brasileiro: "Joyce's Critique of Music", de Arthur Nestrovski, colaborador da Folha.
"Perspectives of New Music" surgiu na Universidade de Princeton, em 1962, por iniciativa de alguns discípulos de Milton Babbitt, o pai do serialismo americano. Na época, Babbitt defendia uma relação estreita entre composição e pesquisa científica. A produção musical deveria ser financiada por instituições acadêmicas, ocupando um lugar análogo ao da linguística, de lógica e da matemática.
O compositor deveria ser também um analista, capaz de explicitar os desdobramentos possíveis e as estruturas profundas de suas composições. Em linhas gerais, a visão de Babbitt acabou sendo endossada pelas instituições culturais americanas e deu ótimos resultados: não há lugar no mundo onde a análise musical seja tão evoluída, cientificamente rigorosa e sofisticada quanto nos Estados Unidos. Não há, também, lugar onde pesquisa musical e científica estejam tão bem entrosadas. "Perspectives of New Music" acabou sendo quase o órgão oficial dessa cooperação.
Isso não significa que a revista não tenha passado por crises. Entre o final da década de 60 e começo da de 70, o modelo rigidamente lógico-matemático de Babbitt se chocou contra a influência crescente de John Cage, da música conceitual e perfomática. Tudo poderia ser música, e se fazia música com tudo.
Na tentativa de manter o pulso da situação, os redatores de "Perspectives" ampliaram enormemente o leque de seus interesses. Isso comportou uma certa perda de rigor. Um musicólogo famoso por sua verve polêmica, Joseph Kerman, escreveu em 1982 que "Perspectives of New Music" tinha se convertido "numa revistinha de vanguarda típica, repleta de gráficos amadorísticos". Lendo os ensaios recém-publicados, a acusação de Kerman parece injusta, embora possamos reconhecer os alvos de seus ataques.
O livro é dividido em seis partes: teoria estética; música contemporânea e público; ser um compositor; ambiente, consciência e magia; música e literatura: a sobrevivência das estéticas. A última seção reproduz uma polêmica entre especialista em análise musical, bastante circunscrita e pessoal.
A terceira é composta pelos testemunhos de quatro compositores: Babbitt, Cage, Xenakis, Erickson. Não são os textos mais significativos desses autores, mas não deixam de despertar interesse. A segunda parte, sobre múscia contemporanea e público, é a mais fraca: abre com um debate entre Michel Foucault e Pierre Boulez, mas é uma conversa de ocasião, que não acrescenta muito ao que já se conhece. Continua com dois textos de J.K. Randall e Benjamin Boretz, entremeados de uma análise da obra recente desses dois compositores, alunos de Babbitt (Boretz é também o diretor da revista).
Aqui a crítica de Kerman faz sentido, porque os textos estão repletos de um sociologismo superficial e literário e de uma boa dose de autocomplacência. São a expressão, ao que tudo indica, de uma classe institucionalizada de artistas que perdeu contato seja com um referente exterior, seja com o rigor de uma linha de pesquisa, e fica pairando em uma espécie de eterna e vaga auto-análise, onde tudo é significativo e nada muda coisa alguma. Há outros textos desse tipo, ensaios em forma de diário ou até reflexões em versos. Mas em geral o livro é muito melhor do que isso.
As reflexões mais interessantes se encontram, em geral, nos autores não diretamente ligados à composição: os ensaios de estética, na primeira secção, são trabalhos de especialistas em filosofia e antropologia, cujos achados não se limitam, nem se referem necessariamente, à música. São ótimos, sobretudo os de Rochlitz e Gans.
O texto de Arthur Nestrovski percorre a obra de Joyce, mostrando que nela a música age de duas formas distintas: conservadora nas citações diretas (onde porém há uma multiplicação de implicações simbólicas); inovadora quando o referente musical não é evocado explicitamente, mas aproveitado como modelo composicional. Este ensaio está sem dúvida entre os melhores do livro. Mas, nesse caso também, se trata não de análise musical, e sim de crítica literária, feita por alguém que conhece a música muito bem.
Entre os compositores, o único que se destaca é David Dunn, um autor que está se dedicando há tempo, de forma original e não-retórica, às relações entre música e ambiente, música e etologia, e que estuda a possibilidade de criar e fazer interagir ecossistemas sonoros.
O que deduzir desse quadro? Por que as contribuições mais interessantes são todas periféricas à área musical, ou produzidas por músicos atípicos, como Dunn? Há duas interpretações possíveis: a primeira, pessimista, é que a composição contemporânea, pelo menos no que diz respeito ao setor que se espelha na revista, se encontra num impasse. Não sobreviveria se não procurasse motivações em outras áreas.
O modelo instituicional e científico proposto por Babbitt entrou em crise, e a enorme abertura do leque de interesses não é que a reação desesperada a um estado avançado de asfixia. A segunda leitura mais otimista, sugere que o sentido da música se disseminou tanto nesses últimos 30 anos, que hoje é possível falar de música mesmo falando de outras coisas, e há uma infinidade de coisas que dizem respeito à música.
O processo iniciado pela escola de Babbitt alcançou, nessa ótica seu objetivo, porque a música se integrou tanto aos outros campos do conhecimento que não é mais possível separá-la deles. Não é fácil escolher entre essas hipóteses, e talvez não seja necessário.
Com todas suas falhas, essa antologia mostra que o mundo da música atual é muito mais rico e facetado do que deixe imaginar uma especialização mal-entendida. Abrir muitas janelas tem lá seus perigos. Mas em geral faz bem à saúde.

LORENZO MAMMI é crítico de arte e professor de música na ECA (Escola de Comunicação e Arte da USP)
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O livro acima pode ser encomendado à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, Cj. Nacional, tel. 011 285-4033)

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