São Paulo, quarta-feira, 23 de novembro de 1994
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Barba Azul sem castelo

CARLOS HEITOR CONY

Barba Azul sem castelo, carrego há tempos um embrulho que prometi nunca mais abrir desde o dia em que o fechei com o laço vermelho do ovo de uma distante páscoa.
Jurei que poderia fazer tudo na vida, violar monjas, profanar santuários, roubar os vasos do Templo, morar na Bahia ou torcer pelo Flamengo, toparia qualquer coisa sórdida, mas jamais abriria aquele embrulho, jamais ultrapassaria aquela porta.
Recebi o aviso pelo correio, um investimento pequeno do qual não mais lembrava, deveria receber magros dividendos, precisava das cautelas. Procurei em todos os lugares onde, cautamente, poderia ter guardado as cautelas. Sobrou o embrulho, a me desafiar, só podia estar ali. Desatei o nó da fita vermelha que, estranhamente, ainda cheirava um pouco a chocolate.
Da informe papelada caiu ao chão uma fotografia rasgada ao meio. Eu ficara com aquela metade. Ela com a outra. Olho a herança que me coube daquela partilha, da qual, apesar de tudo, eu ficara com o melhor bocado. Um rosto que não existe mais.
Rosto que me acompanhou embora eu nunca tenha tentado o reencontro agora impossível. Rosto que me caiu aos pés rasgado, mas não esquecido. Rosto que incertamente me acusa e, certamente, ainda me condena.

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