São Paulo, quarta-feira, 23 de novembro de 1994
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Surdo e mudo

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA – O Rio de hoje não é o mesmo de um mês atrás. A cidade mudou em escassas quatro semanas. E para pior.
A diferença não está apenas na presença de militares nas ruas. A principal mudança não é palpável como o Urutu. Esconde-se no interior da alma do carioca.
Sim, foi o comportamento do carioca o que mais se alterou. Antes combativo, não baixava a guarda. Hoje, inerte, acompanha a ocupação dos militares com certo sentimento de alívio.
A admitir-se sitiado pela criminalidade, o carioca preferia, há bem pouco, apontar para São Paulo, Nova York ou qualquer outro santuário da violência.
A cumplicidade no caos o confortava. Emprestava ares de normalidade ao anormal. Dava-lhe a perspectiva da absolvição.
Alguns cariocas mais radicais chegavam mesmo a negar a existência da violência. O amor à cidade consumia-lhes as vistas. Estavam cegos de paixão.
Agora, o carioca comporta-se como o doente que espera pelo milagre. Esquece-se de que o médico, no caso, veste farda, porta armas pesadas e corrompe a tradicionalmente doce rotina da cidade.
O novo carioca pode ser analisado de dois modos. Há o lado positivo, representado por uma visão menos romântica, mais realista da situação da cidade.
Como no caso de indivíduos viciados, para que esteja apta a iniciar um processo de recuperação, a cidade precisa mesmo admitir-se fora da normalidade.
O lado negativo está na passividade com que se observa a administração do tratamento. Enxerga-se o Exército como o grande salvador.
Longe de representar uma solução, a presença do Exército nas ruas do Rio apenas reforça o caráter anômalo da situação. Ainda que favorável à providência, o carioca deveria vigiar, jamais se omitir.
À antiga cegueira dos que se negavam a exergar o recrudescimento da violência, acrescenta-se agora uma crônica e perigosa mudez. A hora não é de confiar. O momento é de vigiar.

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