São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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Direito e advogado entre a cidadania e a lei

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Vários leitores me cobraram uma opinião sobre o cinto de segurança imposto no município de São Paulo. Vou desapontá-los. Enquanto cidadão, uso o cinto de segurança muito antes da lei municipal, pois estou convicto da maior proteção que me assegura. Assim, enquanto cidadão, penso que os objetivos substanciais visados pela legislação paulistana correspondem ao interesse social.
Todavia, enquanto operário do direito, penso, com a mesma força, que a lei municipal é inconstitucional pois só a União legisla sobre trânsito e transporte, matérias de interesse nacional, não compreendidas nas competências municipais nem na competência concorrente estadual. Se o leitor quiser conferir vá ao inciso 11 do artigo 22 e ao artigo 30, incisos I e V da Carta Magna.
Seria absurdo que meu convencimento de trabalhador jurídico me levasse a parar de usar o cinto só porque acho a lei inconstitucional. Continuo com o hábito antigo, mas respeito aqueles que, por razões físicas ou psicológicas, nunca aceitaram o cinto, preferindo solução judicial que os dispense da obrigatoriedade ou das multas.
Posso partir desse enunciado tão simples para uma exploração ética. A dissidência entre o cidadão e o advogado, na aferição individual das condutas, é comum e normal, muito embora incompreendida até por pessoas de bom nível cultural calcadas, no mais das vezes, em informações colhidas nos meios de comunicação social, cuja qualidade, lamentavelmente, nem sempre é a melhor. Quando se argumenta com a soberania do direito de defesa e da presunção de inocência busca-se resposta em falsas limitações éticas.
Lembro-me de uma entrevista dada por Marcio Thomas Bastos, um dos grandes advogados deste país e líder da classe, a Jô Soares. O entrevistador lhe perguntava se era possível defender direitos humanos fundamentais, a benefício de todo conjunto social, e, ao mesmo tempo, ser advogado de figuras muito criticadas pela mídia.
Marcio distinguiu a atitude do cidadão, assumida enquanto tal, segundo as próprias convicções e a atitude do cidadão-advogado, que só pode manifestar-se em público e nos autos sobre o cliente, de modo compatível com o interesse deste.
A dicotomia de atitudes vale, com maior dramaticidade, para o criminalista que, mesmo sabendo do delito do constituinte, deve defendê-lo para, ao menos, impedir a punição mais severa do que a permitida por lei. Mas vale para todos os advogados, ao sustentarem com empenho e coragem a aplicação do devido processo legal, ou seja, dos procedimentos adotados na forma da lei.
Rudolph Von Ihering, um dos maiores juristas de todos os tempos, escreveu há mais de um século que a forma garante contra o arbítrio. Quando autoridades proclamam que certas pessoas devem ser condenadas porque é isso o que o povo espera, fico preocupado. Ninguém pode ou deve ser condenado senão quando a prova dos autos, contraditada pela defesa, demonstre, sem dúvida, a existência de conduta irregular. Sem dúvida porque, em a havendo, a decisão favorecerá o acusado.
Nascem da simples distinção que fiz no começo, entre o cidadão comum e o cidadão advogado, importantes consequências. Para o advogado, predomina o direito de defesa porque é garantia fundamental dos inocentes. Se a suposta convicção popular, afirmada pelos órgãos de comunicação, for tomada como base de decidir, só o inocente será sacrificado, já que os culpados pagarão pelo que realmente fizeram. O sacrifício do inocente ofende a cidadania.

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