São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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'A vanguarda me aborrece'

As teorias sobre o fim do romance e a destruição da narrativa deram origem à literatura mais aborrecida e perecível de nosso tempo
Vargas Llosa fala a seguir sobre romance, jornalismo e cinema, e faz a defesa da literatura como arte de contar histórias.
Folha - O jornalismo foi importante para que o sr. conhecesse melhor a complexidade social do Peru. E do ponto de vista da linguagem? O texto jornalístico influenciou sua literatura?
Llosa - Bem, eu creio que há um perigo com o jornalismo. O trabalhar sobre a realidade e fazer da linguagem algo tão eminentemente funcional, como você está obrigado quando faz jornalismo, pode criar tiques, hábitos: o recurso ao estereótipo, ao clichê. Isso é um risco. E quando você faz literatura tem que haver essa espécie de luta para criar um estilo, quer dizer, para romper justamente os estereótipos e tudo o que é linguagem morta. Há também o risco do facilismo. O jornalismo cria uma facilidade, e a facilidade em literatura é o que há de pior.
O que para mim foi muito positivo no jornalismo foi me manter sempre com um pé na rua. Creio que em tudo que escrevi se percebe uma curiosidade, um interesse, uma preocupação, uma paixão pelo que está ocorrendo agora, em meu tempo, em meu mundo.
Folha - Há quem diga que a função de contar histórias foi assumida pelo cinema e pela TV, e que portanto a literatura deve ser outra coisa –um trabalho com a linguagem que negue, pulverize ou destrua a narração. Como o sr. vê essas idéias?
Llosa - Creio que essas teorias deram origem à literatura mais aborrecida e mais perecível de nosso tempo. Essa teoria pode ser interessante, sobretudo quando a expressa algum desses franceses que têm, como dizia Koestler, "a capacidade de poder demonstar tudo aquilo em que creem, e de crer em tudo o que podem demonstrar" (risos). São grandes sofistas.
Isso de que a literatura pode ser só exploração das possibilidades de linguagem, isso de dinamitar a linguagem viva porque a linguagem está totalmente capturada pelo poder, essa idéia de que você se rebela contra o poder destroçando e reconstruindo as palavras –isso tudo pode ser divertido como proposta intelecutal, mas até agora não vi um só romance baseado nessas idéias que se possa ler.
Quem pode ler hoje em dia a Robbe-Grillet? É muito difícil. Provavelmente a única coisa interessante dele é o ensaio "Por um 'nouveau roman"', em que ele desenvolve essas teorias.
Quando Joyce escreveu o "Ulisses", bem, todas as teorias que podem estar por trás desse livro ficaram legitimadas. Mas até agora não há nenhuma obra que legitime essa idéia de que um romance pode ser um grande romance sem contar uma história, sem personagens, como puro exercício de linguagem. Durante certa época tentei ler muitos experimentadores, e me aborreci espantosamente.
Folha - O sr. tirou algum proveito dessas leituras?
Llosa - Suponho que, afinal, isso me serviu para reafirmar minha paixão pelo romance, digamos, de ordem tradicional, com histórias, com personagens, o romance como um mundo alternativo, que finge ser a realidade.
Folha - Ouvindo isso, temos a falsa impressão de que a sua narrativa é convencional...
Llosa - Só no sentido de que há histórias, há personagens, há um tempo fictício. Mas, claro, na construção creio que você pode experimentar de tudo, para dar maior densidade, complexidade e ambiguidade a uma história, não?
Com a experiência de nosso tempo, não podemos contar histórias como as contava Balzac, ou como as contava Machado de Assis, a quem admiro enormemente. Digamos que há um tipo de leitor à sua frente que não admite uma história contada dessa maneira por um escritor contemporâneo.
Folha - O que impressiona em seus romances é justamente as diferentes e complexas maneiras como estão construídos, com diversas vozes narrativas que se alternam ou se misturam. O sr. elabora essas estruturas antes de começar a escrever?
Llosa - Não, elas vão saindo aos poucos. Tenho uma idéia nebulosa de uma história, umas trajetórias de personagens, que começam a se cruzar. Faço uns esquemas. Mas no princípio caminho totalmente às cegas, tateando, buscando distintas possibilidades até que começo a ver a estrutura.
Isso dá muito trabalho, significa dar muitas voltas, refazer as cenas desde distintos pontos de vista. Talvez o mais difícil seja encontrar o ponto de vista, decidir desde que perspectiva se vai contar a história, em que perspectiva no tempo e no espaço, e que haja um desenvolvimento coerente.
Folha - O cinema parece ter influenciado bastante seu modo de narrar.
Llosa - É verdade. Gosto muito de cinema. Digamos que no cinema sou muito menos exigente que na literatura. Gosto de coisas que na literatura eu não poderia ler. Eu não poderia ler um western, ou uma ficção científica, ou mesmo um policial. E gosto muito de alguns filmes desses gêneros.
Mas gosto também do que chamam filme de autor, claro. Sou um grande admirador de Visconti, de Buñuel, de Orson Welles e de todos os cineastas que conseguiram criar um mundo pessoal, algo que é muito mais difícil no cinema do que no romance, porque no cinema você tem que passar por uma série de mecanismos da indústria.
Folha - Buñuel dizia que o filme podia ter a linguagem, o gênero e o tema que quisesse, só não tinha o direito de ser chato.
Llosa - Sim, e creio que essa é também uma obrigação do romance: a obrigação de entreter.

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